Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Melhor condição de vida proporcionou surgimento de religiões moralizantes

Pesquisa francesa baseada em análises estatísticas conclui que esse desenvolvimento, especialmente o maior acesso a alimentos, foi fundamental para o surgimento do cristianismo e o judaísmo, por exemplo



A transição espiritual, portanto, foi motivada por um maior conforto material, defende o pesquisador francês. Melhores condições de vida, particularmente as associadas ao acesso a alimentos e abrigo adequado, acenderam a centelha das religiões moralizantes e sua consequentes normas. ;Nessa outra realidade, os seres humanos não são apenas corpos, mas sim dotados de uma alma e podem sobreviver à morte de sua encarnação corporal. Mais importante, os indivíduos que perseguem o sucesso material são condenados. Apenas moderação do comportamento e a moral garantiria a salvação;, completa Baumard.

Professor do curso de filosofia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), José Carlos Avelino da Silva, que não participou do estudo, ajuda a esclarecer a proposta do francês: ;No período bem primitivo, quando era muito selvagem, o homem compreendia que todas as coisas eram divindades, e tudo ; árvores, animais, terra ; era dotado de deuses. Se realizavam o culto e tinham resultado, as pessoas sabiam que estavam fazendo a coisa certa. Existia uma outra compreensão da realidade e, com isso, existia uma moral diferente;.

Lídice Meyer Pinto Ribeiro, professora de pós-graduação em ciências da religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo, complementa dizendo que isso não significa que, para os primitivos, não existisse bem e mal. ;Só que, entre os povos mais antigos, o peso era igual;, afirma. Nas religiões que surgiram posteriormente, a coexistência desses dois conceitos permaneceu, mas com um peso maior para o lado positivo. ;No budismo, encontramos demônios internos que precisam ser combatidos, mas, mesmo assim, estão lá e não são eliminados;, ressalta.

Calorias

A análise de Baumard e colegas é amparada em testes que eles realizaram com várias teorias que buscam explicar a história das religiões, nos quais combinaram modelagem estatística e teorias psicológicas baseadas em abordagens experimentais. O método os levou a concluir que a riqueza, chamada por eles de ;captação de energia;, é o fator que mais influencia a espiritualidade ; superando a complexidade política ou o tamanho da população. O modelo criado por eles mostra uma transição brusca em direção às religiões moralizantes quando os indivíduos passaram a ter acesso potencial a cerca de 20 mil calorias diárias, o que sugeria que essas populações da Eurásia tinham atingido a segurança e a capacidade de planejar e se preparar para possíveis acontecimentos futuros.

Estudos psicólogos anteriores indicaram que a melhor estratégia para lidar com a escassez de recursos é a recompensa imediata. Poupar para o futuro ou pensar na vida após a morte é uma ocupação que só faz sentindo quando há certeza do que comer hoje. Nesse contexto, as pessoas podem abrir mão das recompensas imediatas e priorizar o amanhã. A ascensão econômica, concluem os autores, é a base para a abnegação, o altruísmo e a compaixão das novas doutrinas. Uma vez que as necessidades mundanas foram atendidas, a religião se deu ao luxo de projetar as recompensas espirituais para o além.

Esse processo, entretanto, não foi brusco. A transição, lembra Lídice Ribeiro, foi progressiva. O cristianismo, o islamismo e o judaísmo derivam do monoteísmo e do surgimento de Iavé, figura que foi confrontada com outras divindades. ;Era uma forma de ser diferenciado. Outras divindades tinham aparência e sentimentos humanizada, e Iavé também tem isso, mas sem a aparência humana ;, diz Lídice.

Nos textos mais antigos, é possível observar um Iavé que sente raiva, ciúme e se vinga. ;É uma figura espiritual, não humana e que, posteriormente, exige um comportamento de santidade, diferenciador, dos outros deuses. E aí entra a religião ética;, analisa a especialista. Por mais contraditório que possa ser, uma parte das religiões cristãs está retomando os conceitos de recompensa imediata, prometendo a felicidade na Terra e não no céu. Um fenômeno que Lídice classifica como pós-modernista, resultante da correria do dia a dia. ;A tendência é a busca por respostas rápidas para anseios e problemas. As novas igrejas que surgem têm esse conceito.;

DUAS PERGUNTAS PARA

José Carlos Avelino da Silva, professor do curso de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás e autor do livro Zeus e a Filosofia ; Religião e Individualidade da Grécia Antiga (Editora PUC-GO)

As religiões anteriores não tinham moral?
É senso comum que o Cristianismo instituiu o critério moral para definir o certo e errado. Por isso,
se diz que as religiões anteriores não tinham moral, mas na realidade, o que as religiões anteriores tinham era outro tipo de moralidade. Toda religião tem uma moral e proposta de comportamento. Na religião dos gregos antigos, o referencial de certo e errado era a vitória. Os 300 de Esparta foram para a Batalha das Termópilas sabendo que iam morrer nos desfiladeiros, mas por que? Para atrasar os pérsios em território grego, e possibilitar que eles organizassem a sua defesa. Eles tinham padrão moral e religioso, mas era da vitória.

Na opinião do senhor, qual o futuro das religiões?
Cada compreensão de realidade tem uma moral diferente. Hoje, por exemplo, o dinheiro é importante. Alguns autores dizem que é um deus sem religião porque todo mundo cultua, e o valor que a gente dá a ele é muito maior do que as possibilidades que ele oferece. Pode ser que seja a consolidação dessa tendência materialista, mas também pode ser que exista uma reação que já começou e que estimula o retorno das pessoas às religiões, tanto para o islamismo quanto para o cristianismo. Outro aspecto é que no mundo há muito machismo. Para a sociedade primitiva, o que existia era a deusa mãe. Ela era o alimento e a fertilidade, sendo o símbolo dela a mulher. Mas quando a agricultura substituiu a coleta, e houve também a diminuição da mulher em relação ao homem, veio à tona o deus masculino, e que representa as principais religiões. Quando a gente superar o arcaísmo da sociedade, vai existir um deus que não é nem homem e nem mulher, mas o Espírito Santo.