Em 20 de julho de 1969, a missão espacial Apollo 11 chegou com sucesso à Lua, provando que a humanidade tinha dominado a tecnologia para cruzar a fronteira entre a Terra e o cosmo. Mas existe uma máquina crucial para as expedições tripuladas cujo funcionamento fora do planeta é imprevisível: o próprio corpo humano. Muitos esforços têm sido empenhados para desvendá-lo no espaço sideral. Um dos mais recentes, feito pela agência espacial norte-americana (Nasa), mostra que, em uma viagem espacial, as defesas do corpo são enfraquecidas e a pane imunológica perdura durante todo o percurso, não somente na aterrissagem ou nos voos rápidos. Em outras palavras: os astronautas em missão ficam muito vulneráveis a surtos infecciosos de difícil controle, talvez até desconhecidos da medicina terráquea.
;Ainda não se conhecem todos os efeitos da microgravidade sobre o corpo humano, especialmente quando a exposição ao ambiente espacial é prolongada. Sabe-se, porém, que todos os sistemas e todos os órgãos são afetados, em maior ou menor grau, incluindo o inume. Em um voo espacial, reconhece-se que a imunidade humana diminui;, explica Thais Russomano, coordenadora do Centro de Microgravidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, único na América Latina a estudar a fisiologia humana espacial, a engenharia biomédica espacial e a medicina de aviação.
Inicialmente, os cientistas acreditavam que as alterações do sistema imunitário eram uma resposta pós-voo. Essas conclusões, entretanto, eram baseadas em estudos com animais, em experimentos com gravidade alterada na Terra ou em cultura celular em voo. Observou-se, por exemplo, que as condições de microgravidade anulavam a capacidade dos linfócitos de se deslocarem entre os tecidos. Mais recentemente, pesquisadores observaram essas alterações na tripulação de missões de até 14 dias a bordo do ônibus espacial que faz a ponte entre a Terra e a Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês).
Os dados mostraram que astronautas em missões mais curtas podem ter a reativação de vírus latentes, como o citomegalovírus e o vírus zoster. ;Essas viagens são extremamente corridas e estressantes, muito mais do que um dia de trabalho típico a bordo da ISS;, conta Brian Crucian, o principal autor do estudo. ;Devido a essas condições, os dados obtidos em expedições de curta duração podem não refletir o funcionamento da imunidade durante um voo espacial mais longo;, completa o cientista.
Um experimento feito na estação espacial Mir, da Rússia, verificou alterações no comportamento das células de defesa durante uma expedição de três meses. Agora, a Nasa confirma em uma publicação na revista especializada Microgravity, do grupo Nature, que o sistema imunológico realmente não se recupera durante missões longas, com mais ou menos 100 dias. Por isso, a fraqueza no sistema imunitário não pode ser explicada pelo estresse inicial que decorre da partida ou da adaptação às novas condições.
Células enfraquecidas
No estudo recente, a equipe de Brian Crucian fez uma avaliação integrada da função imune, dos perfis de citocinas e da imunidade viral dos astronautas a bordo da ISS durante viagens de 60 e 100 dias (veja arte). ;As instalações de apoio laboratorial únicas e a tripulação de seis pessoas proporcionaram uma excelente oportunidade para realizar uma análise abrangente dos padrões imunes e de como eles se equilibram durante um voo espacial mais longo;, explica o autor. Amostras de sangue de tripulantes de missões curtas e longas foram coletadas em momentos diferentes e rapidamente enviadas à Terra, chegando aqui até 72 horas depois.
As que voltaram pelo ônibus espacial US Space Shuttle, que pertence aos Estados Unidos, foram analisadas no Centro Espacial Kennedy, localizado na Flórida, e na Base da Força Aérea de Edwards, na Califórnia. As que voltaram pelo Soyuz foram analisadas na Cidade das Estrelas, centro de treinamento cosmonauta da Rússia. As investigações mostraram que houve alterações dos níveis sanguíneos de várias células do sistema imunológico, como as T, que perderam eficácia. Foi registrada ainda alteração na produção de moléculas especiais, como as citocinas, também essenciais para as defesas do organismo.
Essas alterações funcionais perduraram durante todo o tempo em que a tripulação da ISS ficou no espaço, tanto nas viagens curtas quanto nas longas. Elas explicam, em parte, a manifestação persistente do vírus da herpes relatado por astronautas durante os voos. Brian Crucian observa que essas alterações podem ter implicações em missões no espaço profundo, para além do cinturão de Van Allen, em que haverá elevada exposição a radiações e toxinas ; talvez ainda desconhecidas ;, além dos riscos inerentes à exploração humana em um planeta intocado.
Nesses cenários, o atendimento clínico torna-se limitado. ;Como vários aspectos da imunidade durante o voo espacial permanecem sem investigação, seria melhor detalhar o fenômeno para entender os riscos específicos à saúde. Essa caracterização completa teria de ser interpretada no contexto de doenças terrestres;, considera Brian Crucian. Segundo ele, é possível ainda que indicadores fisiológicos sejam predecessores de doenças específicas. ;Se assim for, o desenvolvimento de contramedidas específicas, semelhantes àquelas que estão sendo desenvolvidas para outros aspectos fisiológicos de voo, como a perda de massa óssea e o risco de cálculos renais, seria necessário para garantir a saúde dos astronautas;. Os resultados também contribuem para o melhor planejamento de viagens espaciais turísticas. As primeiras devem ocorrer dentro de dois anos.
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