Ciência e Saúde

Pesquisadores descobrem o mais antigo caso de decapitação funerária em MG

Realizado há 9 mil anos, o ritual é mais um exemplo da riqueza cultural dos antigos povos que habitavam o país milênios antes do Descobrimento

Isabela de Oliveira
postado em 24/09/2015 06:07

O sepultamento 26 de Lapa do Santo (E) e a caverna onde os restos mortais foram descobertos: mãos cuidadosamente dispostas sobre o crânio


Em uma de suas crônicas sobre o Brasil, o colonizador Pero de Magalhães Gândavo dizia que a língua dos índios carecia de três letras: ;f;, ;l; e ;r;. ;Coisa digna de espanto;, acrescentava, ;porque assim não há fé, nem lei, nem rei, e, dessa maneira, vivem desordenadamente;. Na visão dos europeus de então, os ;homens pardos; eram apenas bárbaros sem regras, distantes de qualquer traço de civilização. A visão eurocêntrica, no entanto, foi demolida nos últimos séculos. Um olhar mais atento e menos preconceituoso, adotado por cientistas, revelou a complexidade e a riqueza cultural dos primeiros americanos, que até hoje podem surpreender. É o que mostra um estudo publicado na edição desta semana da revista Plos One, que detalha o mais antigo caso de decapitação ritualística das Américas, ocorrido há 9 mil anos e descoberto agora em uma caverna no sítio arqueológico de Lapa do Santo, em Minas Gerais.

Decapitação pode parecer, como provavelmente veria Gândavo, coisa de bárbaros. Mas a cena encontrada em uma sepultura a 55cm de profundidade pelos pesquisadores aponta na direção oposta. Não se trata de um evento de violência e punição, mas que, ao contrário, revela a sensibilidade e a sofisticação ritualística de um povo que possuía apenas o corpo humano para expressar seus princípios cosmológicos a respeito da morte.

;A ideia não é de sacrifício. A decapitação fazia parte de um ritual funerário no qual era importante proceder a redução do corpo do falecido, ou seja, a decapitação não foi a causa da morte. Ela foi realizada após a morte do indivíduo;, esclarece ao Correio o antropólogo brasileiro André Strauss, principal autor do estudo e pesquisador do Departamento de Evolução Humana do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária, na Alemanha.

Descoberto em 2007, o sepultamento descrito no trabalho é o de número 26, entre os já encontrados em Lapa do Santo. O esqueleto enterrado pertencia a um homem jovem do Povo de Luzia, nome dado ao grupo de caçadores-coletores que habitava a região. O crânio decapitado estava coberto pelas duas mãos do morto, amputadas e posicionadas com cuidado: a direita sobre o lado esquerdo da face, com os dedos apontando para o queixo; e a esquerda, colocada da porção direita do rosto, mas na direção contrária (veja quadro). Análises feitas com um microscópio que gera modelos tridimensionais de marcas e cortes indicaram que os tecidos moles foram removidos com lascas de pedra.

A interpretação dos detalhes é fruto de um amplo trabalho de equipe, que inclui pesquisadores da Universidade de São Paulo e renomados peritos forenses, como antropóloga Sue Black, diretora do Centro de Anatomia e Identificação Humana da Universidade de Dundee, no Reino Unido. Curiosamente, a especialista conta que os padrões de decapitação da Lapa do Santo lembram o de um caso moderno, criminoso, no qual ela trabalhou. ;O caso ainda não foi resolvido, e a vítima ainda não foi identificada, o que restringe as informações que eu posso fornecer;, diz. ;No entanto, os padrões de fratura vistos sobre os ossos do pescoço da ossada são como os da vítima de assassinato que eu examinei: sua cabeça foi hiperestendida e girada, causando impacto e fratura torsional. Foi interessante ver isso nesse crânio brasileiro tão antigo, que estava quase na mesma posição.;

A configuração peculiar e cuidadosa na qual a ossada foi enterrada sugere que ela não pertencia a um inimigo, mas, provavelmente, a um indivíduo de status único, como alguém venerado. Não foram encontradas, por exemplo, marcas de violência nem características típicas de uma cabeça-trófeu, como buracos preenchidos com cordas que facilitariam a exposição do crânio. O enterro ocorreu pouco tempo após a morte. ;O sepultamento 26 faz parte de um padrão mortuário em que a redução de cadáveres frescos e a remoção de partes do corpo eram um elemento central, mas o foco não era, necessariamente, a cabeça;, diz Strauss.

Reformulação

Esse achado levou o pesquisador a repensar suas impressões sobre as práticas funerárias de Lapa do Santo, localizada na área arqueológica de Lagoa Santa, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. ;Durante muito tempo, os arqueólogos acreditaram que o enterro dos mortos em Lapa do Santo era um processo simples e trivial. Foi justamente com a descoberta do sepultamento 26 e de outros semelhantes que começamos a perceber que essa visão estava equivocada;, explica Strauss. A ossada permite que, do ponto de vista cronológico, os pesquisadores reformulem as teorias sobre a época em que se iniciaram os rituais de decapitação na América do Sul. Até então, o caso mais antigo era do sítio Asia 1, no Peru, datado em cerca de 4 mil anos atrás.

O novo trabalho também oferece novos dados sobre a geografia desse tipo de ritual, pois achava-se que a prática, em tempos pré-coloniais, era registrada apenas na região dos Andes, no lado oposto do continente. ;O desafio agora é entender como o caso que reportamos se relaciona com os do outro lado do continente. Se é que há alguma relação;, diz Strauss. Enquanto a questão permanece aberta, os estudos em Lapa do Santo seguem a todo vapor, com esforços concentrados em extrair o DNA do Povo de Luzia e estudar os microfósseis do sítio. ;E claro, seguimos escavando o sítio. A cada ano, descemos cerca 40 centímetros. É um processo de longa duração.;

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