Ciência e Saúde

Primeiros organismos terrestres não apareceram em ambiente superaquecido

O processo teria se dado em condições quase glaciais, a partir do encontro de águas subterrâneas quentes com oceanos frios

Roberta Machado
postado em 27/02/2016 08:00

Cores branca e verde nas rochas indicam encontro de águas frias e quentes em um passado remoto

Há 3,5 bilhões de anos, o planeta estava quase que inteiramente coberto por água, e a crosta de rocha que daria origem aos continentes apenas começava a tomar forma. Cientistas acreditam que esse caldeirão tenha sido o ambiente do surgimento da vida no planeta, por meio de reações ocorridas em oceanos aquecidos que chegavam a 85;C. No entanto, alguns pesquisadores contestam essa hipótese e defendem que o clima na Terra nesse tempo primordial seria bem mais ameno. Um estudo publicado hoje na revista Science Advances usa a análise de sedimentos de uma rica região geológica da África do Sul para argumentar que a vida poderia ter se formado em um ambiente mais próximo do modelo glacial.

O novo estudo foi realizado com base em estruturas fossilizadas do cinturão de rochas verdes de Barbeton, cadeia montanhosa considerada uma das regiões mais antigas da crosta terrestre e estudada há mais de um século devido ao material vulcânico bem preservado existente no local. Foram necessários seis anos de escaladas, observações e análises para traçar o histórico das amostras primitivas. Usando dados de isótopos de oxigênio, os pesquisadores chegaram à conclusão de que as rochas serviam como um tipo de cano, por onde jorravam correntes de água quente. Os cientistas calculam que essas correntes chegassem a 200;C, o que pode ter dado a especialistas uma ideia equivocada sobre o que aconteceu durante o Éon Arqueano, como é conhecido o tempo em que surgiram as primeiras formas de vida unicelulares.

Os autores do trabalho acreditam que esse material analisado guarda, na verdade, pistas de um sistema um pouco mais complexo. Esses canos teriam sido formados, na verdade, entre fluidos aquecidos de campos hidrotermais. Os cientistas acreditam que essa água quente surgia a mais de 2km abaixo do nível do mar e acabava se misturando à superfície de um oceano gelado, numa dinâmica de interação térmica. ;Essas novas observações revelam que ambos os sistemas hidrotérmicos operavam em ambientes relativamente frios e que as temperaturas superficiais da Terra no início do Arqueano eram similares àquelas dos tempos mais recentes;, ressaltam os autores do estudo.

Essa hipótese pode ser confirmada, de acordo com os pesquisadores, pela presença de depósitos glaciais datados daquela mesma época, além de minerais de enxofre no sedimento marinho mais profundo, um material que só se forma atualmente em temperaturas extremamente baixas. De acordo com as evidências, o clima era frio o suficiente para a formação de geleiras na linha do Equador. ;Como havia gelo próximo ao nível do mar em baixas latitudes, os oceanos e as atmosferas tinham a tendência global de serem frios;, explica ao Correio Maarten de Wit, da Universidade Metropolitana Nelson Mandela em Porto Elizabeth, na África do Sul. ;Todo o planeta teria sido como o Ártico, tanto na terra quanto nos oceanos profundos ao redor;, descreve o pesquisador. O trabalho também teve a colaboração da Universidade de Bergen, na Noruega.

Debate
As conclusões alimentam um debate travado entre cientistas há décadas. Alguns especialistas veem nas rochas antigas provas de um planeta de temperaturas altíssimas, enquanto outros argumentam que seria necessário um clima mais ameno para que a vida se formasse. O Sol também teria apenas 75% da sua força atual à época, uma questão chamada de paradoxo do jovem sol fraco, levantada inclusive pelo astrônomo Carl Sagan. A teoria de que os oceanos primitivos seriam formados por um sistema de temperaturas diversas ; uma superfície gelada e fluxos de água quente que jorravam das profundezas marinhas ; explicaria as provas contraditórias encontradas pelos estudos ao longo de tantos anos.

As novas estimativas indicam que esse sistema de águas de temperaturas complementares teria se mantido por mais de 30 milhões de anos. ;Se esses autores estiverem corretos na sua interpretação de rochas glaciais em águas oceânicas frias, isso poderia ser o ;prego no caixão; dos argumentos (em defesa) de uma Terra primordial quente, e forçar muitos a reavaliarem interpretações da composição da atmosfera antiga e das condições em que a vida se formou e se diversificou pelo globo;, analisa o especialista Michael Hren, pesquisador do Centro de Geociências Integradas da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos.

Os responsáveis pelo artigo ressaltam que essa é a primeira evidência de que a Terra sempre teve uma temperatura ideal para sustentar vida, um estado alcançado graças a eras intercaladas de aquecimento e resfriamento. No entanto, eles também acreditam que o debate sobre as condições primitivas do planeta pode se estender. ;Pesquisadores normalmente preferem manter as suas interpretações, até que revisem o próprio trabalho. E com certeza haverá pessoas que possam questionar essa interpretação;, afirma Wit. ;Será necessário mais trabalho para convencer a todos. E será um trabalho duro;, prevê o pesquisador.

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