Quantos genes são necessários para que exista vida? Pesquisadores americanos apresentaram ontem a resposta: 473. Em um artigo publicado na edição desta semana da revista Science, um grupo liderado pelo geneticista Craig Venter mostra que conseguiu criar, em laboratório, uma célula bacteriana composta pela menor quantidade possível de material genético para que ela sobreviva e se multiplique.
A conquista científica, alcançada após décadas de estudo, deve ajudar cientistas a entenderem as funções de cada gene que compõe o DNA dos mais variados seres vivos ; inclusive do homem, o que pode levar à cura de doenças ; e permitir a concepção de moléculas feitas sob medida, que poderiam ser utilizadas em áreas como a da agricultura e da produção de biocombustíveis.
O estudo é uma continuação do trabalho apresentado pelos mesmos especialistas em 2010, quando, após 15 anos de estudos, o time de Venter apresentou a primeira bactéria criada a partir de uma célula sintética. O genoma do micro-organismo tinha sido projetado no computador, fabricado quimicamente em laboratório e depois inserido em uma célula verdadeira cujo material genético havia sido retirado. Essa célula com DNA sintético se dividiu várias vezes e deu origem a uma Mycoplasma mycoides normal. O micro-organismo foi batizado, então, de syn1.0.
Ao observar o sequenciamento do genoma de diversas bactérias nos últimos anos, apresentando uma série de diferenças, os pesquisadores passaram a se perguntar qual o conjunto básico de genes para que a vida surja, aqueles que são realmente indispensáveis. ;Estávamos discutindo a filosofia dessa questão sobre a vida, e, para respondê-la, seria necessário chegar a um material genético mínimo. Provavelmente, a única maneira de fazer isso seria sintetizando um genoma. A partir daí, começamos a nossa busca, que durou 20 anos;, disse Craig Venter em entrevista coletiva.
Função
No novo experimento, os cientistas também se basearam no pequeno genoma da M. mycoides. Usando a técnica anterior, eles desenharam no computador modelos hipotéticos de cadeias mínimas de DNA. Cada um desses modelos foi testado com a inserção de genes externos para ver se as cadeias se quebravam ; o que indicava que ainda havia peças desnecessárias para a vida básica. O procedimento foi repetido até que um genoma bem pequeno não se quebrava mais, indicando que nada ali estava ;sobrando;.
Esse conjunto de 473 genes foi inserido em uma célula esvaziada, e a vida se fez: a nova estrutura com genoma sintético, batizada de syn3.0, se autorreplicou. ;Chegamos a um número próximo ao que muitos estimavam anteriormente, que era de 300. Passamos um pouco dessa quantia, mas, agora, sabemos que esses genes fornecem proteínas importantes para várias ;funções-chave;, e isso é muito importante, já que existe uma grande quantidade de genes e não sabemos a função da maioria;, destacou Venter, que reconhece a possibilidade de pesquisas futuras reduzirem ainda mais a quantidade de genes.
Na avaliação de Francis de Morais Nunes, professor do Departamento de Genética e Evolução da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), o trabalho americano foi muito bem-sucedido ao reduzir significativamente o número de genes e ainda assim obter uma célula eficiente. ;Os achados apontaram 473 genes que não poderiam ser excluídos durante as etapas de redução genômica. O tamanho final do genoma de syn3.0 equivale à metade do de syn1.0. Mesmo com essa redução significativa, as bactérias syn3.0 são biologicamente viáveis em meios de cultura nutricionalmente enriquecidos, contendo aminoácidos, lipídeos, nucleotídeos e vitaminas;, observou o especialista, que não participou do estudo.
O brasileiro destaca ainda a manipulação genética feita pelos autores. ;A ordem dos genes no genoma não é crítica para a manutenção da vida. Em geral, os genes envolvidos na regulação de um mesmo processo biológico não se encontram agrupados numa mesma região do genoma, mas espalhados em regiões distantes. No artigo, os autores descrevem que durante a síntese química do genoma, os genes foram reorganizados e agrupados por função, o que não comprometeu a viabilidade celular;, complementou o pesquisador.
Usos e ética
Syn3.0 pode gerar uma série de estudos genéticos. Certamente, muitos cientistas já anseiam iniciar trabalhos com ela. Eles poderão, por exemplo, inserir um gene e observar o resultado, confirmando ou não a função daquele pedaço de DNA a partir da resposta da bactéria a essa nova peça. Além disso, a técnica permitirá a criação de moléculas ;personalizadas; para vários fins. ;Em teoria, poderíamos acrescentar conjuntos de genes, alterar esse genoma e essencialmente recriar qualquer organismo;, disse Venter. ;Acreditamos que esse tipo de célula poderia ser útil para muitas aplicações industriais. É um organismo muito simples e seria um material mais fácil para os engenheiros lidarem;, completou Daniel Gibson, coautor do estudo.
Nunes, da UFSCar, também acredita que o uso da nova célula pode beneficiar diversos setores, mas ressalta que essa questão pode demorar a sair do papel. ;A síntese de um genoma ;sintético-funcional; permite que o comportamento celular seja previsível e capaz de ser controlado. Portanto, é possível que esses organismos sejam utilizados para o avanço de áreas estratégicas, como a medicina (criação de remédios) e a agricultura (produção de alimentos funcionais). No entanto, é prematuro e imprudente pensar em aplicações imediatas para a bactéria syn3.0. Além disso, a comunidade científica e a sociedade em geral precisam estabelecer um amplo debate sobre as questões éticas e de biossegurança envolvendo a biologia sintética;, destacou.
Em 2010, ao divulgar o primeiro estudo, na qual a célula sintética foi anunciada, Venter e sua equipe foram surpreendidos por uma reação do governo americano. O presidente Barack Obama pediu um relatório que avaliasse as implicações da nova tecnologia, com o objetivo de garantir o uso dentro de limites éticos e evitar riscos à saúde e à segurança da população. Os autores acreditam que as desconfianças quanto ao uso do novo organismo deverão diminuir com o tempo (leia mais sobre o tema em Palavra de especialista). ;Quando anunciamos a primeira célula sintética, houve muita discussão. Isso tem sido discutido abertamente nos últimos cinco anos. Acho que, quanto maior a compreensão da ciência, menos preocupações vamos ter. Nós vemos a vida como DNA e estamos mostrando que, ao tentar entendê-lo, vamos obter também um melhor entendimento sobre a vida;, argumentou Venter.
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