Ciência e Saúde

Vírus da dengue fortalece o zika, aponta pesquisa

O corpo de um paciente infectado não consegue capturar corretamente o segundo invasor, que escapa das células de defesa e começa a se replicar. Mecanismo descoberto pode servir de base para a criação de vacinas

Isabela de Oliveira
postado em 24/06/2016 06:00

O corpo de um paciente infectado não consegue capturar corretamente o segundo invasor, que escapa das células de defesa e começa a se replicar. Mecanismo descoberto pode servir de base para a criação de vacinas

A exposição anterior ao vírus da dengue pode potencializar a infecção por zika, sugere pesquisa publicada hoje na revista Nature Immunology. Apesar de iniciais, os achados indicam que há a possibilidade de o surto explosivo de zika nas Américas ter sido impulsionado, em parte, pela alta frequência de dengue na região. Em uma segunda pesquisa na revista Nature, o mesmo grupo mostra que um anticorpo específico da dengue exerce efeito inverso: o de neutralizar o zika, proporcionando alvo potencial para uma futura vacina.

O primeiro estudo, que incluiu cientistas do Instituto Pasteur, na França; da Universidade de Mahidol, na Tailândia; e do Imperial College London, no Reino Unido, mostra como o vírus zika se apropria das defesas do organismo infectado e as utiliza como uma espécie de cavalo de Troia para invadir células humanas sem ser detectado. O processo chama-se aumento da infecção dependente de anticorpos (ADE). ;Existem quatro tipos de vírus da dengue. A teoria é que um indivíduo contaminado pela segunda vez com um patógeno diferente da primeira infecção pode apresentar a doença mais grave porque os anticorpos do primeiro caso facilitariam a infecção do segundo tipo viral;, explica Luzia Maria de Oliveira Pinto, do Laboratório de Imunologia Viral do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e não participante da pesquisa.

Os cientistas imaginaram que o ADE poderia ocorrer quando o sistema imune já exposto à dengue tem contato com o zika. Liderados por Gavin Screaton, coletaram anticorpos de indivíduos diagnosticados com dengue e os colocaram em contato com culturas de células humanas e o vírus zika. Os anticorpos conseguiram reconhecer e se ligar ao zika. No entanto, essas células de defesa de dengue preexistentes parecem ter amplificado a infecção de zika pelo fenômeno ADE.

No processo, os anticorpos treinados para reconhecer o invasor da primeira infecção até conseguem identificar o novo vírus, mas com menor precisão. Embora consigam se ligar ao patógeno, fazem isso de forma irregular e ;frouxa;. Esse ataque parcial do sistema imunológico não é suficiente para conter totalmente a infecção. ;Frouxamente; ligado ao vírus, o anticorpo o transporta para uma célula imune, cuja responsabilidade é aniquilar o invasor. Mas o patógeno mal capturado consegue escapar e contra-ataca invadindo a célula humana. Nela, sequestra a maquinaria imunológica para replicar partículas virais, que se alastram rapidamente pelo organismo, provocando uma infecção ainda mais intensa.

Gavin Screaton diz que, embora o trabalho esteja em uma etapa muito precoce, oferece indícios consistentes de que a dengue potencializa a infecção por zika. ;Isso pode explicar por que o surto nas Américas foi tão grave e por que ocorreu justamente nas áreas em que a dengue é prevalente. Precisamos, agora, de mais estudos que confirmem esses resultados, o que pode progredir para uma vacina;, acredita o pesquisador.

Elzinandes Leal de Azeredo, também do Laboratório de Imunologia Viral do IOC/Fiocruz, concorda que os achados são expressivos. ;Mas não são conclusivos, apesar de muito relevantes diante do desconhecimento atual dos mecanismos imunopatológicos envolvidos na infecção pelo zika;, pondera. ;Além disso, estão de acordo com achados de estudos anteriores demostrando que a infecção secundária por um sorotipo diferente de dengue pode aumentar a gravidade da doença. O que os autores pensam, ou buscam demonstrar, é que a infecção prévia pelo vírus da dengue poderia estar associada à gravidade da infecção do zika.;

Brasil


Elzinandes é cautelosa ao traduzir os achados para a realidade brasileira. ;Pelo que temos observado, especialmente na nossa população, o vírus zika tem um tropismo (atuação) forte pelo sistema nervoso. As células que circulam no sangue, que foram as estudadas, não são o melhor modelo para entendermos os quadros de microcefalia ou as síndromes neurológicas que acontecem em alguns indivíduos;, explica.

Esper Kallas, integrante da diretoria da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), também tem ressalvas sobre a validade dos resultados para explicar a maior repercussão do zika nas Américas, sobretudo no Brasil. ;Aqui, temos uma população maior e mais densa, muito mais expressiva que regiões em que o vírus circulava até chegar aqui. Nós, os brasileiros, fomos capazes de observar as relações entre doenças neurológicas, começando pela microcefalia em recém-nascidos, com o zika. Isso pode fazer com que as pessoas pensem que, aqui, a situação é mais grave, mas não é assim. Parece ser mais grave porque observamos coisas que, até então, passavam despercebidas em outros lugares;, defende.

Kallas conta que, na Polinésia, os casos de microcefalia passaram despercebidos, sendo verificados muito tempo depois. Não há notícias de reações semelhantes na África. ;O que pode ser apenas uma falta de comunicação desse efeito naquela região;, observa Luzia Maria, do IOC/Fiocruz. No entanto, após a associação do zika com microcefalia ter sido revelada por cientistas brasileiros, países como Cabo Verde, que tiveram o primeiro contato com a doença recentemente, registraram três casos da malformação neurológica em recém-nascidos de mulheres contaminadas na gestação.

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