Ciência e Saúde

Técnica de edição intensifica debate sobre intervenção em genes humanos

Procedimento inédito extirpa mutação que causa complicações cardíacas nas primeiras fases do desenvolvimento embrionário. O resultado intensifica o debate sobre as implicações éticas da intervenção em genes humanos

postado em 03/08/2017 06:00

Imagem de embriões após concluída a edição genética: 72% das amostras foram corrigidas

Pela primeira vez na história, cientistas conseguiram anular as chances de o ser humano herdar uma doença genética. Eles utilizaram uma técnica avançada de edição de genes para retirar uma mutação de DNA que causa a cardiomiopatia hipertrófica ; enfermidade responsável por insuficiência cardíaca e morte súbita ; em um embrião durante as primeiras fases do seu desenvolvimento. Divulgado na edição de ontem da revista britânica Nature, o trabalho, além de abrir a possibilidade de desenvolvimento de novas formas de prevenção, traz questionamentos éticos, já que, em princípio, a mesma tecnologia poderia ser usada para alterar características físicas de bebês, como a cor dos olhos e o tipo de cabelo.


Mais de 10 mil transtornos hereditários são controlados por um gene. No caso da cardiomiopatia hipertrófica, a herança de uma única cópia do MYBPC3 pode causar a enfermidade. Para retirá-la, os investigadores utilizaram a técnica chamada CRISPR-Cas9, que foi desenvolvida em 2012 por cientistas norte-americanos, em parceria com chineses e sul-coreanos, e é considerada um dos procedimentos mais promissores e precisos de edição genética. O método consiste em uma enzima, chamada de CAS9, que age como uma espécie de tesoura de genes, retirando partes indesejadas do genoma de forma precisa e as substituindo por novos pedaços de DNA.

Os pesquisadores realizaram uma fecundação in vitro de ovócitos normais com espermatozoides que tinham o gene defeituoso para a cardiomiopatia hipertrófica. Simultaneamente com o esperma, introduziram a enzima responsável pela edição genética. O resultado foi bastante positivo: cerca de 72% dos embriões (42 de 58) foram corrigidos. No grupo de controle, 47,4% dos embriões gerados por técnicas tradicionais de fertilização in vitro não apresentaram a cópia mutante.

;Essas ferramentas ainda podem ser melhoradas para chegar a uma taxa de sucesso de 90% ou até de 100%;, ressaltou, em comunicado à imprensa, Shukhrat Mitalipov, um dos autores do estudo e diretor do Centro de Terapia Celular e Genética Embrionária na Universidade de Saúde e Ciência de Oregon, nos Estados Unidos.

Em estudos anteriores com a CRISPR-Cas9, na China e na Suécia, foram usados embriões já formados. Nesses casos, a ferramenta de edição de genes agiu sobre algumas moléculas. No novo trabalho, conduzido por um consórcio internacional de investigadores, ao usar ovócitos e espermatozoide, a equipe pôde alterar o DNA do doador paterno antes do início da divisão celular, fazendo com que a mutação fosse corrigida em todas as células.

Os autores acreditam que a tecnologia poderá ser usada para impedir a ocorrência de milhares de distúrbios genéticos, eliminado as chances de os pais transmitirem enfermidades aos filhos, em um ciclo sucessivo. ;Ao usar essa técnica, é possível reduzir o peso dessa doença hereditária na família e eventualmente na população humana;, ressaltou Shukhrat Mitalipov. ;Essa pesquisa avança significativamente a compreensão científica dos procedimentos que seriam necessários para garantir a segurança e a eficácia da correção genética da linha germinal;, frisou Daniel Dorsa, também autor do estudo e pesquisador da Universidade de Saúde e Ciência de Oregon, os Estados Unidos.

Procedimento inédito extirpa mutação que causa complicações cardíacas nas primeiras fases do desenvolvimento embrionário. O resultado intensifica o debate sobre as implicações éticas da intervenção em genes humanos

Vigilância


Há, porém, questionamentos éticos sobre esse tipo de procedimento. Uma técnica similar à CRISPR-Cas9 foi testada em 2015, na China, e registrou-se o fenômeno do mosaicismo ; caracterizado pela presença simultânea de genes saudáveis e defeituosos no embrião. Esse resultado intensificou as críticas e a vigilância com relação ao procedimento de edição genética. Segundo Jun Wu, pesquisador do Instituto Salk, na Califórnia, a forma como eles fizeram a técnica elimina o problema. ;Ao usar a técnica numa fase mais precoce do desenvolvimento embrionário, conseguimos evitar o mosaicismo;, ressaltou o integrante da pesquisa.

Em um comentário sobre o trabalho, também divulgado na revista Nature, Darren Griffin, pesquisador da Universidade de Kent, no Reino Unido, levantou outro ponto a ser discutido. ;A questão mais debatida é saber se o princípio de modificar os genes de um embrião in vitro é aceitável. Mas outra pergunta deve entrar em debate: é moralmente justo não agir se tivermos tecnologia para prevenir essas doenças fatais?;, provocou.

Também em 2015, um grupo de cientistas da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos (NAS, em inglês) considerou que seria ;irresponsável; usar a tecnologia CRISPR-Cas9 para modificar embriões enquanto os problemas de segurança e de eficácia existirem. Pesquisas realizadas com embriões humanos precisam seguir regulação estrita, que não permite, por exemplo, que o material modificado seja implantado no útero de uma mulher, dando início a uma gravidez. Por isso, no procedimento divulgado ontem, os cientistas interromperam o desenvolvimento dos embriões após alguns dias e os descartaram depois do sequenciamento para análise da eficácia da técnica.

Os autores do estudo ressaltam que o uso da técnica precisa ser aprimorado e discutido até chegar aos testes com humanos. ;Podemos prevenir a transmissão de doenças genéticas às futuras gerações, mas essa perspectiva ainda está distante. Antes dos testes clínicos, serão necessárias pesquisas suplementares e um debate ético;, afirmou, em um comunicado, Paula Amato, pesquisadora da Universidade de Saúde e Ciência de Oregon.

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