Ciência e Saúde

Reciclagem de água cresce no combate à crise hídrica

Segundo especialistas, a medida pode abastecer setores diversos, dos tanques das indústrias às torneiras das casas

Paloma Oliveto
postado em 25/03/2018 08:00
Parecia um recurso inesgotável. Mas, com os humanos utilizando anualmente 4,6 mil quilômetros cúbicos de água, por volta de 2050, mais de 5 bilhões de pessoas ; metade da população global estimada para daqui a três décadas ; serão afetadas com a crise hídrica. Diante desse cenário apresentado pelas Nações Unidas no Fórum Mundial da Água, evento que se encerrou sexta-feira em Brasília, ganha força uma alternativa defendida há tempos por cientistas: a reciclagem ou o reúso para abastecimento em diversos setores, da indústria ao consumo humano.

Para quem sempre esteve acostumado a ter água limpa ao alcance da mão, a ideia de reaproveitá-la pode não soar agradável. Porém, para 844 milhões de pessoas que, hoje, vivem sem acesso a esse recurso essencial, iniciativas de reúso já são bem-vindas. Em Cingapura, por exemplo, ninguém parece ter achado ruim quando, no fim da década de 1990, o governo anunciou os planos de reciclagem, inclusive para consumo humano.

Cercada de água salgada, a ilha densamente populada é desprovida de aquíferos e, em terra firme, falta superfície suficiente para a coleta e o armazenamento da chuva. Com isso, segundo a Agência Nacional de Água do país asiático, a demanda atual é de 430 milhões de galões por dia ; o suficiente para encher 782 piscinas olímpicas. Com uma situação dramática e a estimativa de que, em 2060, a demanda dobre, a ilha tem investido em tecnologia de dessalinização e reciclagem de água potável e não potável. Hoje, o reúso atende 40% das necessidades hídricas de Cingapura. A expetativa é de que, em 40 anos, esse percentual suba para 85%.

O processo que permite que a água usada no vaso sanitário esteja pronta para beber ao sair da torneira é de ponta. Em três passos, o líquido passa por microfiltração, osmose reversa e desinfecção ultravioleta, realizados em usinas especialmente desenhadas para isso. A qualidade é rigorosamente monitorada, e os indicadores provam a segurança: há menos de 1cfu (unidade de formação de colônia) da bactéria E. coli por 100ml, como exigem os padrões internacionais. ;Investir em pesquisa e desenvolvimento é importante para buscarmos soluções inovadoras que melhorem a eficiência do tratamento da água e mantenham nosso suprimento sustentável. Nos últimos anos, temos identificado diversas tecnologias promissoras;, destaca Harry Seah, executivo de Sistemas Futuros e Tecnologia da Agência Nacional de Água de Cingapura.

Irrigação


Reciclar água para beber ainda é incomum. Nos países com tradição de reúso do recurso, as aplicações não potáveis são mais habituais. Em San Francisco, na árida Califórnia, a população enfrenta racionamento desde 2013 e, além das restrições no consumo, o governo local investe na limpeza da água residual para atingir a meta de reduzir a exploração dos recursos hídricos.

Participante de um painel sobre reciclagem no Fórum Mundial de Água, a diretora de recursos hídricos da Comissão de Utilidade Pública do município, Paula Kehoe, conta que, atualmente, San Francisco investe no reúso, principalmente para irrigação de parques e campos de golfe. ;Também estamos usando água não potável para limpar as ruas da cidade. Quando construímos nossa nova sede, incorporamos no prédio um sistema de tratamento que permite economizar 65% de água. Muitos desenvolvedores nos procuraram querendo incorporar algo semelhante em seus prédios e em distritos de San Francisco. Então, criamos um programa de água não potável para isso;, diz.

Políticas


O vice-presidente da Associação Internacional de Resíduos Sólidos, Luís Marinheiro, destacou, no painel, que é preciso investir em mais tecnologia de reciclagem da água de forma a tornar a prática comum mundialmente. ;Embora 72% da superfície da Terra esteja coberta por água, apenas 3% é própria para consumo e irrigação. A escassez e as secas aumentaram dramaticamente e, provavelmente, se tornarão mais frequentes e mais severas no futuro. É necessário melhorar a tecnologia de reúso;, disse o engenheiro ambiental.

Entre as propostas dos painelistas foi apresentada a ideia de criar uma política de reciclagem da água residual tratada, com metas progressivas a curto, médio e longo prazos. O oficial sênior da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), Marlos de Souza, lembrou que, atualmente, uma pequena proporção de água reciclada é usada na agricultura, o setor que, ao lado da indústria, mais consome o recurso. Porém, ele destacou que o meio urbano tem de estar envolvido também. ;A agricultura está pronta para o reúso. Mas as cidades estão? A população precisa estar ciente de que suas casas produzem água e que ela pode ser utilizada.;

"A agricultura está pronta para o reúso. Mas as cidades estão? A população
precisa estar ciente de que suas casas produzem água e que ela pode ser utilizada;
Marlos de Souza,
Oficial sênior da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura


Em teste, voluntários sentem mesmo sabor

Mary Gauvain e equipe avaliaram a água tradicional e a reciclada

Na Califórnia, anos de seca tornaram popular a ideia de beber água reciclada. Na prática, porém, convencer os consumidores a consumir o produto não é tão fácil. ;Parece que o termo ;água residual; e a ideia da reciclagem em geral evocam reações de nojo;, diz Daniel Harmon, estudante de psicologia da Universidade da Califórnia em Riverside e autor de um estudo sobre o tema, publicado na edição do mês passado da revista científica Appetite. ;Temos de tornar a água reciclada menos assustadora para as pessoas que se preocupam com isso, já que ela é uma importante fonte de água agora e no futuro;, observa.

De acordo com Harmon, seis companhias californianas trabalham com o uso potável indireto da água de reúso, quando ela passa por tratamento e é reintroduzida ao lençol freático, de onde volta para o sistema de consumo humano. ;Os estudos mostram que a tecnologia de tratamento remove todos os contaminantes. Mas ninguém considerou, até agora, pesquisar sobre o gosto dessa água;, diz.

Para provar que a rejeição à água de reúso é apenas preconceito, o estudante fez um teste com 143 pessoas que tinham de comparar a água engarrafada tradicional à reciclada. Eles tomaram o líquido sem saber a origem das amostras. Depois, deram notas de um a cinco e avaliaram a textura, a temperatura, o cheiro e a cor do líquido. Os voluntários também receberam um copo com água de torneira.

Na avaliação dos resultados, os pesquisadores levaram algumas variáveis em consideração. Uma delas, o DNA. Isso porque existem diferenças genéticas na sensibilidade gustativa, com determinados perfis percebendo o amargor mais intensamente. Além disso, os cientistas consideraram traços de personalidade que ajudaram a determinar a preferência: abertura a novas experiências e neuroticismo (este último caracterizado por ansiedade e insegurança).

No início, eles pensaram que as três amostras receberiam as mesmas pontuações. Porém, uma delas caiu menos no gosto dos participantes: a de torneira. ;Achamos que isso é porque a reciclada e a engarrafada recebem processos de tratamento muito semelhantes. Então, têm o gosto parecido;, diz Mary Gauvain, professora de psicologia e coautora do estudo. Os voluntários mais nervosos e ansiosos expressaram preferência pela água de reúso e pela engarrafada e foram mais negativos com a de torneira. Pessoas abertas a novas experiências gostaram das três. Em conclusão, os pesquisadores sugerem que comparações entre a água engarrafada e a reciclada por osmose podem fazer os consumidores mais favoráveis a tomar água de reúso.

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