Vilhena Soares
postado em 28/06/2018 06:00
Uma descoberta feita ao acaso por cientistas americanos surge como esperança de novos tratamentos para a narcolepsia. Durante autópsia no cérebro de pacientes que haviam sofrido com o distúrbio crônico do sono, a equipe observou que um deles apresentava alta quantidade de hipocretina ; proteína que é reduzida no órgão de narcolépticos. Intrigados, os pesquisadores foram a fundo na investigação e descobriram que o indivíduo era viciado em heroína. Para eles, a descoberta, publicada na última edição da revista Science Translational Medicine, poderá ajudar no desenvolvimento de medicamentos que tenham uma ação semelhante à da droga.
Jerry Siegel, professor de psiquiatria e ciências biológicas da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, explica que, em 2000, estudos mostraram que a narcolepsia é causada pela perda de cerca de 90% das 80 mil células cerebrais que contêm hipocretina. Ao se deparar com um cenário fora do esperado, eles cogitaram que a morfina, o ingrediente ativo da heroína, poderia restaurar neurônios produtores de hipocretina em narcolépticos.
[SAIBAMAIS]Em experimentos com ratos, a administração de morfina reverteu a cataplexia ; perda do tônus muscular, um dos sintomas da narcolepsia. Os pesquisadores acreditam que futuros testes com humanos deverão determinar se os opiáceos, ou novos compostos semelhantes a opiáceos, poderão ser usados para restaurar os níveis de hipocretina e tratar a narcolepsia. ;Mostramos, no estudo, que a morfina pode reverter a narcolepsia em camundongos. Mais trabalhos em animais são necessários antes que ela possa ser usada em humanos devido ao risco de dependência. Como os narcolépticos tendem a não ficar viciados, mesmo usando drogas que são abusadas pela população em geral, há esperança de que isso leve a um tratamento mais eficaz;, destaca Siegel.
Paulo Mattos, neurocientista e diretor clínico do Centro de Neuropsicologia Aplicada (CNA), do Instituto D;OR de Pesquisa e Ensino, no Rio de Janeiro, ressalta que o estudo americano é um exemplo das imprevisibilidades positivas que podem ocorrer na ciência. ;Sempre gosto das descobertas que surgem por acaso. É interessante ver como a análise de um paciente com um vício mostrou algo tão diferente do que o esperado;, diz.
O especialista também acredita que os resultados podem ajudar, futuramente, no desenvolvimento de terapias mais eficazes. ;Esse estudo sugere que, talvez, algum medicamento que haja de forma semelhante à morfina ou à heroína consiga aumentar a hipocretina de narcolépticos, o que seria muito bem-vindo, já que temos poucas opções de tratamento para essa doença. No Brasil, só temos um medicamento aprovado.;
Contra o vício
Ainda não há uma explicação científica para a concentração da hipocretina no cérebro de dependentes de heroína. Siegel explica que as atividades dessa proteína estão relacionadas à busca pelo prazer. ;Então, esse aumento cria um ciclo de feedback viciante: mais neurônios hipocretinianos, mais tomada de opiáceos;, diz. Constatações feitas por ele e a equipe nos experimentos com ratos reforçam a tese.
A produção de hipocretina se manteve nas cobaias mesmo após a interrupção do tratamento com morfina. Segundo os cientistas, isso sugere que os humanos podem continuar produzindo hipocretina após pararem de usar heroína. E esse aumento de hipocretina pode ser um fator relacionado ao desejo por opiáceos.
A equipe pretende se aprofundar nesses mecanismos para chegar a possíveis abordagens terapêuticas contra a dependência química. Reduzir o excesso de células de hipocretina, acreditam os cientistas, poderia facilitar a retirada a longo prazo dos opiáceos em dependentes e, assim, prevenir recaídas.
Mattos também aposta na possibilidade de surgimento de novos tratamentos. ;Além da narcolepsia, podemos tratar os usuários de heroína, algo que é um problema muito maior, pois atinge um número mais extenso de indivíduos. Seria interessante encontrar uma maneira de reduzir a hipocretina nesses usuários, ajudando, assim, a acabar com o vício em opioides, que tem aumentado consideravelmente, principalmente nos Estados Unidos (Leia Para saber mais);, ressalta.
"Talvez, algum medicamento que haja de forma semelhante à morfina ou à heroína consiga aumentar a hipocretina de narcolépticos, o que seria muito bem-vindo, já que temos poucas opções de tratamento para essa doença;
Paulo Mattos,
neurocientista e diretor clínico do Centro de Neuropsicologia Aplicada
Para saber mais
Mais mortal que a guerra
O vício em opiáceos é um grande desafio enfrentado pelos americanos. De acordo com o jornal The New York Times, em 2016, 59.700 pessoas morreram em decorrência do vício nessa droga ; uma quantidade de óbitos maior do que a de americanos que perderam a vida nos 19 anos de guerra no Vietnã. A combinação de heroína pura com opiáceos sintéticos ilegais, a maioria deles com origem na China, tem impactado no aumento de dependentes.
Em outubro passado, o presidente Donald Trump declarou que a dependência em opioides é uma emergência de saúde pública nacional, mas não destinou verba para o combate da situação, recebendo críticas de muitos americanos por isso. Especialistas destacam que a situação se agrava também devido à facilidade de acesso a drogas, com empresas farmacêuticas sendo processadas por alguns Estados devido a um suposto incentivo de consumo de medicamentos extremamente fortes.