Paloma Oliveto
postado em 26/08/2018 08:00
Era uma vez o mosteiro de um reino muito distante, onde religiosos vestidos com uma túnica marrom passavam os dias fazendo cópias de textos sacros. Seis séculos depois, três desses manuscritos atravessaram o Atlântico e desembarcaram na ex-colônia do reino distante, trazidos por um importante estudioso de línguas que, dizem, os encontrou em um sebo. Quando ele morreu, outro conhecedor de idiomas convenceu a universidade de uma capital recém-nascida a adquirir aquelas preciosidades. Até o dia em que homens armados tomaram o poder e expulsaram os sábios. Para proteger os pergaminhos, o professor responsável pela compra dos códices os levou embora. Eles retornariam sete anos depois e seriam encerrados em um cofre, onde hoje repousam, ao lado de outros tesouros da história.
E foi assim que três manuscritos produzidos por volta do fim do século 14 no norte de Portugal, provavelmente em um mosteiro beneditino da ordem cisterciense, vieram parar na Universidade de Brasília (UnB). Mesmo dentro da instituição, pouca gente sabe da existência desses documentos, que chegaram à capital em 1964 por intermédio do filólogo Nelson Rossi, depois de pertencerem a Serafim da Silva Neto, um dos mais importantes especialistas brasileiros em língua portuguesa. Abrigados no setor de Obras Raras da Biblioteca Central da UnB, esses pergaminhos escritos no estilo gótico cursivo renderam cerca de 30 trabalhos acadêmicos até hoje e inspiraram a universidade modernista a criar um programa de estudos medievais.
Em breve, os manuscritos ; identificados na nota fiscal da compra como Livro das aves, Flos sanctorum e Diálogos de São Gregório ; poderão entrar para o programa Memória do Mundo, da Unesco, que visa incentivar a preservação e a divulgação de documentos relevantes para o patrimônio cultural mundial. ;Eles são uns dos primeiros manuscritos literários em português arcaico que existem, pois foram produzidos não muito tempo depois de o português se separar do galego e, por isso, são de grande relevância para o estudo da língua;, justifica Raphael D. Greenhalgh, bibliotecário responsável pelo setor de Obras Raras da biblioteca da UnB, ao lado da bibliotecária Néria Lourenço. Os dois são como ;anjos da guarda; dos códices e grandes entusiastas do reconhecimento deles como memória da humanidade.
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Greenhalgh destaca que se trata de documentos excepcionais. De acordo com ele, Diálogos de São Gregório é um dos quatro do mundo escritos em língua portuguesa. Já o fragmento do Livro das aves e o Flos sanctorum são, até onde se sabe, as únicas cópias em português desses manuscritos, destaca Maria Eurydice de Barros Ribeiro, pesquisadora do Programa de Estudos Medievais (PEM/UnB) e professora da universidade. Há mais de 20 anos, ela estuda o bestiário e orienta alunos da pós-graduação que se debruçam tanto sobre os aspectos históricos quanto os artísticos do códice.
;Quando cheguei para trabalhar na UnB em 1992, formei um grupo de estudos e fomos à biblioteca fazer um levantamento nas Obras Raras. Foi quando o bibliotecário da época falou que havia manuscritos medievais no cofre. Fiquei perplexa;, recorda a historiadora. Embora a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, tenha códices da Idade Média no acervo, a UnB é a única universidade brasileira a ter esse tipo de documento.
Textos religiosos
Os três manuscritos são textos religiosos muito populares no período medieval, copiados de versões em latim ainda mais antigas. O Livro das Aves é um bestiário, ou seja, obra que utiliza esses animais para simbolizar conceitos morais. O que está no acervo da UnB é apenas um fragmento: restam nove fólios (a página de um pergaminho) e, originalmente, deveria ser muito maior, pois, de acordo com a pesquisadora do PEM, manuscritos semelhantes trazem, no geral, 53 aves.
A professora, que trabalha na primeira edição comentada da obra, diz que a riqueza desse e dos outros documentos medievais da UnB não está tanto no conteúdo, que já foi bastante explorado anteriormente, pois existem diversas versões deles pelo mundo, escritos em outras línguas. Ela afirma que, para fins de pesquisa, o valor maior são as informações que não estão explícitas nos pergaminhos. Um dos mistérios a se resolver, por exemplo, é o motivo pelo qual as obras foram copiadas no século 14, tanto tempo depois dos originais, produzidos entre os séculos 7 e 9.
Sinal de status
Para Maria Eurydice de Barros Ribeiro, o Livro das Aves provavelmente foi uma encomenda de um mercador endinheirado, que queria exibir o livro para mostrar status. Ela chegou a essa conclusão pelas entrelinhas: o manuscrito traz a figura de um falcão quatro vezes, quando a maioria das obras do tipo tem somente duas. Além disso, o animal, que simbolizava a nobreza, foi ilustrado com pigmento azul, muito caro, pois era feito a partir do lápis-lázuli, raro e valioso na época.
O mesmo manuscrito foi escolhido como objeto de estudo da historiadora Juliana Medeiros, cujo trabalho de conclusão de curso consistiu na pesquisa sobre a representação do pavão no bestiário medieval. ;Comparei tanto o texto quanto as iluminuras da representação desse animal no manuscrito da UnB à de outros livros das aves;, diz a pesquisadora, que escolheu o pavão por ser o único fólio completo do documento.
Agora, ela e o aluno de mestrado Tiago Veloso trabalham com a catalogação dos três manuscritos, que será publicada na página da biblioteca. Juliana Medeiros pretende dedicar a carreira acadêmica aos códices medievais da universidade. ;O padrão dos três manuscritos, que provavelmente foram feitos pela mesma pessoa e, talvez, formassem um único volume, é muito diferente dos demais. O Tiago e eu queremos responder a várias perguntas sobre a origem deles;, conta.
Diabos e santos
Já a historiadora Clarice Machado Aguiar trabalhou com o Flos sanctorum no mestrado, concluído no ano passado. Ela revela que, quando escolheu o tema, ainda na graduação, não imaginava que uma das principais fontes do estudo estava tão perto. A pesquisadora tinha a intenção de investigar o papel do diabo nas narrativas medievais de milagres e, na defesa da monografia, a banca recomendou que ela utilizasse o manuscrito da UnB. ;Eu nunca tinha ouvido falar nele. Fiquei muito surpresa;, confessa a historiadora, que discorda da nomenclatura recebida pelo documento. ;Os Flos sanctorum eram livros sobre a vida de santos, e esse manuscrito trata de narrativas de milagres;, observa.
Na pesquisa, Clarice Machado Aguiar dividiu o livro por temas e descobriu que o diabo aparece em 62 dos 143. ;Ele quase nunca é chamado de diabo, mas de inimigo, anjo mau ou inimigo do gênero humano. O diabo medieval é muito político e está sempre brigando com os santos, tentando convencê-los a levar as almas para o inferno.;