Ciência e Saúde

Planta conhecida como cabelo-de-índio floresce 24 horas após incêndio

Descoberta inédita ilustra a relação emblemática entre a rica savana e as queimadas

Vilhena Soares
postado em 31/03/2019 06:00 / atualizado em 14/10/2020 13:49
Planta cabelo-de-índio
Um dos símbolos mais conhecidos da mitologia grega é a fênix. De acordo com a lenda, a ave morria por meio da autocombustão e, tempos depois, renascia das próprias cinzas. Pesquisadores brasileiros acabam de descobrir que uma flor típica do cerrado tem características semelhantes às do pássaro mitológico. Os cientistas observaram que a Bulbostylis paradoxa, uma erva pertencente à família Cyperaceae, inicia a floração apenas 24 horas após a queima do bioma, um fenômeno que ainda não havia sido detectado. A descoberta, publicada na última edição da revista Ecology, ajuda a entender melhor as peculiaridades da savana mais rica do mundo e pode fazer parte de métodos de preservação mais efetivos.

O cerrado é uma vegetação extremamente peculiar devido principalmente à capacidade de rebrotar e florescer pouco tempo depois de ser atingido pelo fogo, algo que não ocorre nas savanas africanas e australianas, por exemplo. Essa característica intrigou pesquisadores que visitaram o Brasil em séculos passados. Atualmente, cientistas brasileiros também tentam entender melhor as características desse bioma.

Alessandra Fidelis, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), no câmpus de Rio Claro, é uma dessas pesquisadoras. Ela e sua equipe deram início a uma série de queimas experimentais na região de Cavalcante, em Goiás, para estudar as reações do cerrado ao fogo. “Temos trabalhado lá desde 2013, em uma área chamada de Serra do Tombador”, conta ao Correio a autora principal do estudo divulgado na Ecology.

Planta cabelo-de-índioA professora explica que uma peculiaridade que chamou a atenção do grupo foi a velocidade de reflorescimento de uma das plantas da região. “Observamos que, ao colocar o fogo, logo depois que tudo estava cinza, uma das espécies começava a rebrotar muito rápido. Nos experimentos, vimos que as plantas dessa espécie, reduzidas pelo fogo à condição de pequenos tocos carbonizados, começavam a apresentar pontinhos brancos 24 horas depois de queimadas. Esses pontinhos eram as inflorescências despontando”, detalha.

A planta observada, a Bulbostylis paradoxa, é conhecida popularmente como cabelo-de-índio. “Ela está muito presente no cerrado, desde a Venezuela até a parte sul do Brasil. Falamos que tem uma ampla distribuição”, diz a pesquisadora. “Observamos que, em pouco mais de uma semana, as flores se encontram completamente formadas e aptas à polinização.”

Essa velocidade é extremamente positiva para a planta. “Constitui uma grande vantagem porque possibilita que ela floresça, frutifique e disperse suas sementes por meio do vento em um espaço livre, com o solo descoberto, sem barreiras nem competidores. Apenas 40 dias depois do fogo, já é muito difícil encontrar sementes, porque elas já se disseminaram. É o único evento desse tipo descrito até o momento no mundo”, frisa Alessandra Fidelis.

Espalhar as sementes após a queimada é uma tarefa extremamente importante, essencial para fornecer recursos necessários à sobrevivência de animais predadores, como aves e formigas. Já a rebrota, explica a professora, é responsável por oferecer folhas mais tenras e palatáveis para muitos mamíferos de grande porte que habitam o cerrado, como bois e veados.

A relação do fogo com o cerrado tem sido amplamente pesquisada, já que esse bioma responde de forma positiva ao fogo, diferentemente de outras vegetações. “Entender como essa planta floresce tão rápido é algo que nos ajuda a decifrar essa relação com as queimadas e como elas podem ser benéficas. No caso da Bulbostylis paradoxa, sabemos que o fogo até a ajuda a florescer. Acreditamos que outras espécies tenham essas mesmas características”, aposta a autora.

Alessandra Fidelis ilustra um acontecimento recente em que essa peculiaridade ficou evidente: o grande incêndio que atingiu a Chapada dos Veadeiros em 2017. “Muitas pessoas não acreditaram quando viram fotos da região pouco depois dessa tragédia. Tudo estava aparentemente restaurado em apenas alguns dias. É exatamente isso que ocorre: o fogo ajuda espécies a desabrocharem.”x


Descontrole


A cientista ressalta que o grande problema em relação às queimadas são os incêndios, criminosos ou espontâneos. Quando ocorrem depois de anos sem registro, podem assumir grandes proporções, devido ao acúmulo de combustível nas regiões. “O cerrado evoluiu com o fogo. Sua vegetação se regenera facilmente, isso inclui até a manifestação de espécies que antes não habitavam determinadas áreas.”

Há perdas também. Com relação à fauna,  animais podem ficar presos na vegetação em chamas. “Em relação à flora, é preciso lembrar que, no meio do cerrado, existem matas de galeria, matas de vale e veredas. Sendo assim, algumas espécies que são sensíveis ao fogo podem não se recuperar após os grandes incêndios”, complementa a pesquisadora.

'No caso da Bulbostylis paradoxa, sabemos que o fogo até ajuda a florescer. Acreditamos que outras espécies tenham essas mesmas características' Alessandra Fidelis, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e uma das autoras do estudo

Bruno Machado, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Embrapa Cenargen) em Brasília, destaca que o estudo pode ajudar a entender melhor a relação do cerrado com o fogo. “Nós a conhecemos há tempos, mas não tínhamos esse nível de detalhe. Isso é um exemplo de como o fogo pode ser benéfico a esse bioma, algo que muitas pessoas não entendem. Ao pensar em queimadas, achamos que tudo que temos de vegetação é uma floresta tropical. Então, o fogo vai sempre prejudicar. Mas não é o que ocorre no cerrado.”

O especialista ressalta que o estudo também mostra outras características interessantes dessa vegetação. “Muita gente não sabe, mas a área baixa é a mais rica do cerrado. Essas plantas pequenas, que chamamos de arbustos, são diversas. Para cada árvore, temos de seis a sete dessas plantas pequenas. É a savana mais rica do mundo.”

Em busca de mais detalhes


A pesquisa sobre a relação das plantas do cerrado com o fogo terá continuidade. “Queremos realizar mais estudos de campo e coletas de outras espécies na região de Cavalcante”, conta Alessandra Fidelis, uma das autoras do estudo e professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Patricia Rosalem, uma das autoras, também pretende estudar melhor a estrutura da Bulbostylis paradoxa em seu mestrado.

“A ideia é focar nas partes anatômicas, na fisiologia dessa planta, para entender por que ela floresce logo depois do fogo e de que forma isso ocorre detalhadamente. Até porque observamos em campo que ela não floresce sem o incentivo do fogo, ou seja, existe uma relação de ajuda a ser desvendada”, diz. “Estudar as savanas é algo extremamente interessante e acreditamos que vamos ter dados ainda mais ricos, que poderão ajudar em um melhor manejamento.”

Alessandra Fidelis também ressalta como a maior compreensão da relação do fogo com o cerrado poderá ajudar na preservação de um dos biomas mais ricos do planeta, com impactos também na proteção de rios brasileiros. “É preciso haver um manejo criterioso do fogo. A queima preventiva, nas épocas certas, com zoneamento da área total e rodízio das parcelas a serem queimadas, constitui a melhor defesa contra os incêndios desastrosos”, explica.

Bruno Machado,  pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Embrapa Cenargen), acredita que esses estudos podem ajudar na preservação do cerrado. “Muitas pesquisas já têm sido feitas em relação ao manejo do fogo para unidades de conservação. Ainda existe um pouco de resistência devido a dogmas antigos, mas já está sendo aceito que o cerrado precisa desse tipo de intervenção. O fogo, para ele, é uma maneira de incentivar o desenvolvimento da sua diversidade. Quando administrado da maneira correta, não é um vilão”, frisa. 

Nascentes afetadas

O cerrado é um dos biomas mais ricos do mundo e, no Brasil, essa importância ainda é maior, já que importantes rios nascem nessa vegetação. Entre eles, o Xingu, o Tocantins, o Araguaia, o São Francisco, o Parnaíba, o Gurupi, o Jequitinhonha, o Paraná e também o Paraguai. A destruição desse bioma pode comprometer as bacias desses rios de água-doce, além de afetar o potencial hidrelétrico.


Palavra de especialista


Manejo é essencial

“Com a ocupação humana, os incêndios se tornaram anuais e ocorrem no meio da estação seca. Hoje, se tenta prevenir o fogo para sempre, como se fosse possível. Com incêndios anuais, as espécies mais sensíveis morrem e não regeneram, favorecendo os capins e, especialmente, os capins exóticos. Com a prevenção extrema, espécies que proliferam com o fogo se extinguem localmente, e as que não toleram fogo crescem muito e dominam a vegetação. Nenhuma dessas formas de manejar o fogo funciona. Hoje, especialistas aplicam o manejo integrado do fogo, que consiste em queimar o cerrado em época e frequência que não sejam destrutivas, criam aceiros que evitam incêndios e promovem um mosaico de idades e frequências de queima,  favorecendo desde as espécies que são dependentes do fogo para se reproduzir até as que não o toleram. Com isso, a diversidade é mantida, e o bioma estará preparado para enfrentar as mudanças climáticas e as alterações no regime natural de fogo. 

Isso também nos mostra quão complexo é o ciclo de vida das espécies do cerrado e como elas podem nos oferecer informação para uma agricultura sustentável e apropriada ao nosso bioma. Também nos alerta para o fato de que restaurar essa vegetação com toda a sua diversidade será uma tarefa muito difícil e cara. Portanto, o desmatamento tem que ser algo mais planejado e seu custo, determinado”

Daniel Vieira, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília

Para saber mais


Riqueza que impressiona


No século 19 e também no início do século 20, alguns naturalistas vieram ao Brasil para estudar a rica fauna e flora do cerrado. Entre eles se destacam o dinamarquês Eugenius Warming e o francês Auguste de Saint-Hillaire, que citaram, em seus trabalhos, as observações feitas em relação ao bioma, principalmente a rápida recuperação da vegetação após ser atingida por queimadas.

O tema também foi alvo de um livro escrito pelo professor brasileiro Leopoldo Magno Coutinho, da Universidade de São Paulo (USP), chamado Cerrado: ecologia, biodiversidade e conservação, publicado em 2005. Coutinho, um dos maiores especialistas em biomas do país, tinha tanta paixão pelo cerrado e sua relação com fogo que foi apelidado pelos colegas de piromaníaco.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação