Jornal Correio Braziliense

Ciência e Saúde

Lembrança geográfica: análise de DNA revela detalhes da Eurásia antiga

Maior estudo de genomas de indivíduos que viveram na região entre 12 mil e 2 mil anos atrás ajuda a preencher vazios sobre a origem da agriculta e das primeiras línguas indo-europeias, de onde o português derivou

Há 12 mil anos, a história da civilização começava a ser escrita em várias partes da Eurásia, onde, gradativamente, o homem deixava de ser caçador-coletor para se estabelecer na terra. Foi um período de mudanças cruciais, quando, além da agricultura, surgiram as primeiras línguas indo-europeias ; das quais mais de 400, incluindo a portuguesa, se derivam. Foi em uma região chamada Vale do Rio Indo, onde, hoje, estão Afeganistão e noroeste do Paquistão e da Índia, que esses idiomas floresceram. Ali havia uma importante sociedade, das quais descendem populações atuais do centro e do sul da Ásia. Porém, até agora, pouco se sabia sobre o passado e a cultura dessas pessoas.

Agora, em dois artigos publicados simultaneamente nas revistas Cell e Science, geneticistas, arqueólogos e antropólogos anunciaram o maior estudo de DNA humano antigo já realizado, revelando, em detalhes, a história do Vale do Indo e, consequentemente, as origens de boa parte da população atual. A pesquisa foi feita por geneticistas, arqueólogos e antropólogos dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia, que analisaram, pela primeira vez, as informações genéticas de 524 indivíduos. Graças a esse trabalho, o banco mundial de genomas antigos cresceu em 25%.

Ao comparar os DNAs entre eles e com genomas previamente sequenciados e contextualizar essas informações com registros arqueológicos e linguísticos, entre outros, os pesquisadores afirmam terem preenchido muitos vazios históricos a respeito de quem viveu em diversas partes da região desde o Mesolítico (12 mil anos atrás) até a Idade do Ferro (há 2 mil anos). Além disso, os cientistas dizem que os resultados apontam para a relação desses povos com as populações que hoje habitam essa área.

;Esses estudos falam de duas das mais profundas transformações culturais na Eurásia antiga ; a transição da caça e coleta para a agricultura e a disseminação das línguas indo-europeias, hoje faladas das Ilhas Britânicas ao sul da Ásia ;, acompanhando os deslocamentos humanos;, afirma Vagheesh Narasimhan, coprimeiro autor de ambos os artigos e pós-doutorado no Instituto Blavatnik da Harvard Medical School. ;Os estudos são particularmente significativos, porque a Ásia Central e do Sul são partes tão pouco estudadas do mundo.;

Para Ron Pinhasi, pesquisador da Universidade de Viena e coautor sênior do artigo publicado na Science, um dos aspectos mais interessantes do estudo foi a maneira como integra genética, arqueologia e linguística. ;Os resultados surgiram após a combinação de dados, com métodos e perspectivas de diversas disciplinas acadêmicas. Uma abordagem integrativa fornece muito mais informações sobre o passado do que qualquer uma dessas disciplinas poderia fazê-lo sozinha;, avalia. ;Além disso, a introdução de novas metodologias de amostragem nos permitiu minimizar os danos aos esqueletos, maximizando a chance de obter dados genéticos de regiões onde a preservação do DNA geralmente é ruim;, comemora.

Migrações

As línguas indo-europeias ; incluindo hindi/urdu, bengali, punjabi, persa, russo, inglês, português, espanhol, gaélico e mais de 400 outras ; compõem a maior família de idiomas da Terra. Durante décadas, especialistas debateram como elas chegaram a partes distantes do mundo. Alguns sustentam que se espalharam graças a pastores do estepe da Eurásia. Outros acreditam que as línguas viajaram com agricultores que se deslocaram para o oeste e o leste da Anatólia (atual Turquia).

Em 2015, um artigo de David Reich, do Instituto Blavatnik da Harvard Medical School e coautor dos dois estudos, indicou que os idiomas indo-europeus chegaram à Europa por meio das estepes. A pesquisa publicada na Science agora segue uma linha semelhante, no que diz respeito ao sul da Ásia, mostrando que os sul-asiáticos atuais têm pouca ou nenhuma ascendência de agricultores oriundos da Anatólia. ;Podemos descartar uma disseminação em larga escala de agricultores com raízes anatólias no sul da Ásia, peça central da ;hipótese da Anatólia;, segundo a qual esse movimento teria levado a agricultura e as línguas indo-europeias para a região;, disse Reich, em nota. ;Como não ocorreram deslocamentos substanciais de pessoas, este é um xeque-mate para a hipótese da Anatólia;, garante.

Uma nova linha de evidência a favor da disseminação das línguas indo-europeias pelas estepes foi a detecção de padrões genéticos que conectam oradores dos ramos indo-iranianos e balto-eslavos da indo-europeia. Os pesquisadores descobriram que indivíduos atuais de ambos os ramos descendem de um subgrupo de pastores das estepes que se mudaram para o oeste em direção à Europa há quase 5 mil anos e, depois, voltaram para o oriente, espalhando-se pela Ásia Central e do Sul nos 1,5 mil anos seguintes. ;Isso fornece uma explicação simples, em termos de deslocamentos antigos, para as características linguísticas compartilhadas desses dois ramos da indo-europeia, que são hoje separados por grandes distâncias geográficas;, disse Reich.