Ciência e Saúde

Velhice saudável para as trans: qualidade de vida é prioridade

Problemas como solidão, falta de assistência médica especializada e medo da discriminação dificultam a vida das transexuais que chegam à terceira idade

Vilhena Soares
postado em 26/12/2019 06:00
A funcionária pública Bianca  tem acesso a especialistas: Simone de Beavouir escreveu que ;não se nasce mulher, torna-se mulher;. Essa definição pode ser usada para descrever o processo pelo qual as mulheres transexuais e travestis passam durante a vida, uma jornada de lutas constantes. Quando elas envelhecem, esse processo se mantém e pode se tornar ainda mais dificultoso. O receio em procurar ajuda médica devido ao risco do preconceito, a falta de especialistas nos hospitais que saibam das necessidades médicas desse grupo e o medo de ficarem sozinhas durante a velhice são alguns dos obstáculos que impedem essa parcela da população de envelhecer com saúde e qualidade de vida. Médicos e pesquisadores defendem mais estudos e a capacitação de profissionais para auxiliar essas pessoas.

Em uma fase de vida que, para o resto da população, é vista como um momento de descanso, as mulheres trans enfrentam uma série de dificuldades para conseguir descansar com qualidade de vida e segurança. Um dos maiores obstáculos é o atendimento médico adequado. ;Precisamos de pessoas especializadas, pois muitos detalhes ainda são desconhecidos. No caso das mulheres transexuais e travestis mais velhas, elas têm próstata. Por isso, precisam ser encaminhadas a um urologista, só que nem sempre isso é feito;, ilustra Milton Roberto Furst Crenitte, geriatra do Hospital Sírio-libanês, em São Paulo, é um dos pesquisadores que têm se dedicado a entender melhor a população trans. ;Outro ponto é que poucas pacientes sabem que é necessário diminuir a dosagem de hormônios usados regularmente, pois eles podem influenciar outros problemas, como o diabetes e a osteoporose;, completa.

O conhecimento médico é algo essencial e deve começar desde a formação do profissional. É o que defende Francisco Francinete Leite Junior, professor da Centro Universitário Leão do Norte, no Ceará, e autor do livro Sob as marcas do tempo, (trans)envelhecimento na (trans)contemporaneidade. ;Além do preconceito e da discriminação que podem ocorrer, muitos especialistas da área médica ainda não sabem lidar com esse grupo. Vemos que, na formação desses profissionais, na faculdade, ainda temos essa lacuna;, afirma.

Para Leite Júnior, essa falta de conhecimento também se reflete na comunidade científica. ;Quando resolvi estudar esse tema, observei que existem poucos dados sobre ele. A maioria trata dessa população de maneira mais geral, poucos dão foco aos idosos, com mulheres transexuais e travestis mais velhas eu não me lembro de ter visto nada. Os recortes menores são ainda muito poucos, e isso também prejudica a área de tratamento;, ressalta.

Desinformação

Outro fator de grande peso que impede a assistência médica a mulheres transexuais e travestis é o medo do preconceito. ;Muitas pessoas com receio da discriminação e falta de confiança nos profissionais da área deixam de procurar os serviços oferecidos. Temos um trabalho americano sobre o tema, feito com mais de 2 mil pessoas trans. Elas responderam a questões relacionadas a sua experiência nessa área médica: 73% achavam que seriam tratadas de maneira diferente e 60% se sentiram tratadas de forma distinta pelos serviços de saúde;, detalha Milton Crenitte.

A falta de informações para ajudar as pessoas trans foi algo que motivou Kelly Tirelli, psicóloga, a se aprofundar no tema. ;Percebi que precisava estudar mais a respeito do tema LGBT quando, na clínica, recebi pacientes que traziam demandas como não se aceitar ou não ter a aceitação das pessoas que amam, sofrendo preconceitos no dia a dia, angústias, sofrimentos e até agressões;, conta a psicóloga. Tirelli ressalta que a empatia e a humanização no atendimento é essencial, mas o conhecimento e o estudo precisam estar sempre presentes. ;Sofrimento tem peso, e, na sociedade em que vivemos, ser quem você realmente é pesa para muitas pessoas e para os seus. Vejo na clínica uma procura pequena por esse grupo, e isso precisa gerar discussões a respeito do que pode estar gerando isso;, justifica.

Identidade

Outro ponto que prejudica a vida das mulheres transexuais e travestis é o medo de ficarem sozinhas durante a velhice. Para serem aceitas de volta pela família ou em casas de idosos, algumas abrem mão da identidade feminina construída por anos. ;O risco de uma paciente trans viver sozinha e de não ter filhos é muito grande, e isso faz com que elas tenham que mudar toda a vida;, diz Milton Crenitte.

A saúde mental é muito atingida nesse processo, frisa o geriatra. ;Acordar todos os dias e ter que enfrentar pessoas que não te aceitam pelo simples fato de você existir é algo muito difícil e que, na maioria das vezes, exige um atendimento psicológico. Temos grupos sociais que têm surgido no Brasil e que já ajudam essas pessoas, mas ainda precisamos mudar muita coisa. Esse problema da volta ao armário é um exemplo. A mulher trans passa por uma desconstrução para ser aceita pela família e precisa abrir mão de tudo que viveu para não morrer sozinha e receber cuidados no fim da vida;, ressaltou.

Bianca Moura de Souza, 50 anos, tem uma experiência distinta da grande parte das mulheres transexuais, mas enxerga de perto as dificuldades vividas pela maioria delas. A funcionária pública vive o envelhecimento tomando todos os cuidados necessários indicados por especialistas. ;Eu consegui passar em um concurso público quando ainda não tinha nem me descoberto uma mulher trans. Um dia eu fui de terno e, no outro, passei a ir de tailleur. Foi uma mudança brusca em um ambiente muito formal, mas graças a essa estabilidade, hoje consigo ter acesso a especialistas na área médica e consigo me cuidar. Sei que eu sou uma exceção à regra, a maioria das mulheres trans mais velhas não tem esse apoio;, detalhou.

Na tentativa de ajudar mulheres sem os mesmos recursos que os seus, Bianca trabalha na ONG AnavTrans, grupo que orienta as trans e luta pelos direitos do grupo. ;Vamos em busca de políticos que podem nos ajudar, fazemos eventos e queremos que as questões públicas nos incluam. Não só na parte de saúde, mas em relação a toda a nossa representação;, diz. Ela conta que, com o envelhecimento, a maioria das mulheres trans se enxerga em um cenário sem saída. ;Quando completamos 40 anos, saímos do mapa, perdemos a possibilidade de trabalhar com a nossa beleza. É muito difícil ser modelo competindo com uma menina mais nova, fora a dificuldade de conseguir um emprego formal. Muitas têm medo de serem discriminadas em uma entrevista de trabalho;, relata.

Para a servidora pública, as mudanças sentidas com o envelhecimento têm sido difíceis. ;Eu sinto os meus hormônios brigando dentro de mim, é algo completamente novo e que tenho tentado trabalhar com o meu corpo e a minha cabeça. Mas tenho esperança de que esse cenário mude no futuro. Eu quero ser a primeira servidora pública transexual a me aposentar pelo serviço público no Distrito Federal, e isso, para mim, é um marco, pois mostra para todas que podemos ter os mesmos benefícios que a população em geral. Merecemos receber os mesmos auxílios e envelhecer com qualidade.;

Palavra de especialista

Da educação ao respeito

;No Distrito Federal, é muito recente o avanço nas políticas LGBT e naquelas com foco na população trans. Hoje, temos o ambulatório trans, a política do nome social e do banheiro por gênero e até mesmo uma delegacia especializada, que recebe denúncias por motivação LGBTfóbica, racista, contra a pessoa idosa ou deficiente ou até mesmo por intolerância religiosa. No Brasil, tivemos grandes avanços. Podemos citar o direito de mudar o nome de forma definitiva nos cartórios e a decisão do STF sobre a criminalização da homotransfobia. Para se construir uma sociedade justa e igualitária, é preciso entender que a sociedade é diversa e plural. Mesmo que eu não concorde com algo, eu preciso respeitar. O respeito é uma forma de amor, de empatia, pois é muito fácil amar o que nos é conveniente, difícil é amar o que é diferente. Precisamos ensinar nossas filhas e nossos filhos a importância do respeito a todas as pessoas, pois a criança de hoje é a sociedade do amanhã. É só se perguntar ;Qual a sociedade que eu quero para o futuro? Uma que se respeite ou que é cheia de preconceitos?; O futuro começa agora, e agindo assim teremos uma sociedade mais justa para todas e todos, principalmente para a travesti negra e idosa da periferia, que hoje é excluída de tudo e de todos e pode, sim, fazer parte da sociedade com direitos resguardados e oportunidades.;, Paula Benett, gestora pública, é a primeira mulher trans a assumir a coordenação de políticas com pauta LGBT do GDF e a primeira a ocupar um assento no Conselho da Mulher do DF.

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