Enterrar os mortos é uma prática repleta de simbolismos restrita aos seres humanos. Por muito tempo, acreditou-se que rituais funerários eram exclusividade do homem moderno. Há 70 anos, porém, essa ideia começou a ser questionada, quando restos mortais de neandertais — primos próximos dos Sapiens extintos há cerca de 30 mil anos — foram encontrados em uma caverna, com aglomerados de pólen ao redor, sugerindo que outros membros da espécie depositaram flores para homenageá-los, o que evidencia um alto grau de sofisticação cultural.
Ainda hoje, porém, é motivo de debate se esse cenário, descoberto na década de 1950 no sopé do Curdistão iraquiano, representa, de fato, um rito funerário, ou se as flores não foram colocadas no local intencionalmente. Para desvendar esse mistério, uma equipe de pesquisadores das universidades de Cambridge, Birkbeck e Liverpool John Moores, na Inglaterra, foi até a Caverna Shanidar, coletou novo material e está usando tecnologia de ponta, como tomografia computadorizada, com objetivo de reconstituir não apenas o possível túmulo neandertal, mas outras práticas culturais atribuídas à espécie.
Ao chegar na caverna, escavada pela primeira vez há sete décadas pelo arqueólogo Ralph Solecki, os pesquisadores encontraram mais um indivíduo depositado na vala. Com ossos do crânio e do tronco esmagados, o neandertal foi nomeado Shanidar Z e é o primeiro esqueleto articulado de um ser da espécie a ser descoberto em 20 anos. O estudo, realizado em conjunto com a Diretoria-Geral de Antiguidades do Curdistão e a Diretoria de Antiguidades da Província de Soran, foi publicado na revista Antiquity.
Quando Solecki, um arqueólogo norte-americano da Universidade de Columbia, escavou a caverna, na década de 1950, ele descobriu restos parciais de 10 homens, mulheres e crianças neandertais. Alguns estavam agrupados, com aglomerados de pólen antigo ao redor de um dos esqueletos. O cientista afirmou que isso mostrava que os neandertais enterravam seus mortos e realizavam ritos funerários com flores. O “enterro de flores” mexeu com a imaginação do público e estimulou a reavaliação de uma espécie que, antes de Shanidar, era considerada estúpida e animalesca. No obituário do arqueólogo, morto em março do ano passado, aos 101 anos, o jornal The New York Times o chamou de “o homem que atribuiu humanidade aos neandertais”.
Controvérsia
A hipótese levantada por Solecki também provocou uma controvérsia de décadas, com muitos estudiosos questionando se as evidências encontradas no local apontavam para rituais de morte ou enterro de qualquer tipo, e se os neandertais eram realmente capazes de tal sofisticação cultural. Por enquanto, as pesquisas da equipe inglesa sugerem que Solecki estava certo.O arqueólogo norte-americano tentou voltar a escavar a caverna e comemorou quando, em 2011, o governo regional curdo ofereceu ao professor Graeme Barker, do Instituto McDonald de Arqueologia de Cambridge, a oportunidade de revisitar Shanidar. Com o apoio entusiasmado de Solecki, a escavação inicial começou em 2014, mas parou depois de dois dias, quando a guerrilha terrorista Estado Islâmico aproximou-se demais do local.
O trabalho foi retomado no ano seguinte. Em 2016, em uma das partes mais profundas da trincheira, uma costela emergiu da parede, seguida por uma vértebra lombar e, depois, os ossos de uma mão direita cerrada. No entanto, metros de sedimentos precisavam ser escavados com cuidado antes que a equipe pudesse escavar o esqueleto.
Durante 2018-19, os arqueólogos descobriram um crânio completo, achatado por milhares de anos de sedimentos e ossos da parte superior do corpo quase até a cintura — com a mão esquerda enrolada sob a cabeça como uma pequena almofada. Análises sugerem que os restos mortais têm mais de 70 mil anos. Enquanto o sexo não foi determinado, já se sabe, pela dentição, que se trata de um adulto de meia-idade.
“Obter evidências primárias de tal qualidade nesse famoso sítio de neandertais nos permitirá usar tecnologias modernas para explorar tudo, desde o DNA antigo até perguntas se as práticas funerárias dos neandertais existiam e, nesse caso, se eram semelhantes às nossas”, diz Graeme Barker. “Muitas das pesquisas sobre esse tema remontam a 60 ou 100 anos atrás, quando as técnicas arqueológicas eram mais limitadas”, destaca Emma Pomeroy, do Departamento de Arqueologia de Cambridge e principal autor do novo artigo.
Reconstrução
Shanidar Z foi emprestado aos laboratórios arqueológicos de Cambridge, onde está sendo conservado e escaneado para ser reconstruído digitalmente, à medida que mais camadas de lodo são removidas do esqueleto. A equipe também trabalha em amostras de sedimentos trazidas da caverna, procurando sinais de mudanças climáticas em fragmentos de conchas e ossos de camundongos e caracóis fossilizados, além de traços de pólen e carvão, que podem oferecer informações sobre atividades como cozinhar e, claro, a respeito do famoso “enterro de flores”.Quatro dos neandertais, incluindo Shanidar Z e o indivíduo encontrado ao lado do aglomerado de pólen, formaram o que os pesquisadores descrevem como um conjunto único. Como outros sete corpos foram escavados no local, os arqueólogos querem saber se a região da caverna onde eles estavam era como um cemitério, um ponto onde os neandertais enterravam seus mortos.
“Uma rocha proeminente ao lado da cabeça de Shanidar Z pode ter sido usada como um marcador para mostrar aos neandertais onde depositar seus mortos”, diz Pomeroy. Porém, é difícil determinar se o tempo entre as mortes foi de semanas, décadas ou mesmo séculos. “A nova escavação sugere que alguns desses corpos foram colocados em um canal no fundo da caverna criado pela água, que foi escavado intencionalmente para torná-lo mais profundo”, diz Barker. “Há fortes evidências precoces de que Shanidar Z foi deliberadamente enterrado.”
“Nos últimos anos, vimos evidências crescentes de que os neandertais eram mais sofisticados do que se pensava, sendo encontradas desde arte nas cavernas até o uso de conchas decorativas e garras para fabricação de objetos”, afirma Pomeroy. “Se os neandertais usassem a caverna Shanidar como um local de memória para o enterro ritual repetido de seus mortos, isso sugeriria uma complexidade cultural de alta ordem”, conclui.
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