Correio Braziliense
postado em 04/03/2020 16:39
Washington, Estados Unidos - Durante sete anos, Julie Burkhart trabalhou junto com o doutor George Tiller, até sua morte em 2009, quando um extremista antiabortista atirou nele em uma igreja do Kansas, nos Estados Unidos. Desde então, Burkhart assumiu seu lugar."Nunca me arrependerei, porque era o que eu tinha que fazer", disse Julie, de 53 anos, proprietária de uma clínica que enfrentou uma série de obstáculos para exercer seu trabalho, incluindo ameaças de morte e protestos na porta de sua casa. "Às vezes, não importa o preço, você tem que fazer o que é certo", frisou.
Assim como ela, médicos, enfermeiras e gerentes de clínicas lutam diariamente para oferecer acesso ao aborto no Meio-Oeste e no sul dos Estados Unidos, onde a religião está profundamente arraigada na sociedade.
O futuro do aborto será debatido na Suprema Corte dos Estados Unidos nesta quarta-feira. Instituições que oferecem esse serviço não quiseram fazer comentários, ao serem questionados pela AFP, por medo de consequências. Mas não Burkhart - ainda que, desde o assassinato de Tiller, ela pense constantemente em sua própria segurança, na de sua família e na de sua equipe de trabalho.
Depois de uma tentativa de assassinato em 1993, Tiller, um dos poucos ginecologistas que faziam abortos terapêuticos tardios - entre as 22 semanas e o terceiro trimestre -, começou a usar um colete à prova de balas. "Com frequência, ele estava com seu colete à prova de balas no sofá de seu escritório. Acho que me tornei insensível ao nível de risco", comentou Burkhart.
A morte de seu colega de atividade foi, porém, um brutal choque de realidade. Tiller levou um tiro na cabeça de um homem que dizia querer salvar crianças ainda não nascidas.
O homicídio foi duramente condenado, mesmo na comunidade pró-vida, mas os ataques continuaram. Mais três pessoas foram assassinadas em 2015, em uma clínica de Colorado Springs. Desde que o procedimento foi legalizado no país em 1973, o número de mortes por violência antiaborto chega a 11.
Ao longo das décadas, também houve 26 tentativas de assassinato, 42 ataques a bomba e mais de 300 roubos em várias clínicas, segundo a Federação Nacional do Aborto dos Estados Unidos.
Uma montanha-russa
Depois da morte de Tiller, sua viúva vendeu sua clínica, a Women's Health Care Services, localizada na cidade de Wichita.
"Deus meu, não posso culpá-la", disse Burkhart, que trabalhou como porta-voz e lobista de Tiller entre 2001 e 2009. "Mas, logo depois de ela tomar essa decisão, pensei que tínhamos de voltar a abri-la", afirmou. "Continuei esperando que outros dessem um passo e fizessem isso, talvez um médico da comunidade", acrescentou, admitindo que chegou a pensar em jogar a toalha.
"Senti que estava em uma montanha-russa superveloz", desabafou. Ao ver que ninguém agia, Burkhart se sentiu "chamada à responsabilidade". Criou a Fundação Trust Women, comprou a clínica de Wichita e abriu uma outra, na cidade vizinha de Oklahoma.
Em dez anos, sofreu ameaças de morte, roubos em suas clínicas e protestos fora de sua casa. Em um momento, a pressão foi tão forte que se viu obrigada a contratar seguranças apenas para levar sua filha adolescente à escola.
Tudo isso acabou assustando os médicos locais. Mesmo os que já trabalharam com Tiller se negaram a voltar. Hoje, Burkhart tem de buscar médicos em outros estados, em geral da Costa Leste e Oeste, tipicamente mais progressistas.
Isolamento
Além dos problemas de segurança, os médicos locais passaram a temer serem discriminados por seus colegas, perderem suas licenças para operar em hospitais, ou serem demitidos por suas práticas, relatou Burkhart.
Outro obstáculo é o dinheiro. Os bancos se negaram a conceder empréstimos a esta médica ativista para reabrir a clínica de Tiller. "Tivemos que arrecadar dinheiro de doadores", contou.
Em relação às autoridades estaduais, foram aprovadas uma lei atrás da outra - oficialmente, para proteger a saúde dos pacientes. Na realidade, porém, as normas criaram tantos obstáculos que o número de clínicas de aborto no Kansas caiu de 23, em 1980, para apenas quatro em todo estado. No vizinho Oklahoma, há apenas seis.
Também há muita pressão social. "Você pode se sentir bastante isolado. As pessoas nem sempre querem se associar com pessoas como eu, que praticam abortos", admitiu Burkhart, com um pequeno suspiro.
"Dependendo do grupo de pessoas com as quais eu estou, posso não lhes contar tudo sobre mim", completou.
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