Ciência e Saúde

Covid-19: OMS vai retomar testes sobre uso da hidroxicloroquina

Ensaios clínicos estavam suspensos desde a divulgação de pesquisa ligando o uso da droga a maiores taxas de morte de pacientes com covid-19. Os resultados foram questionados por cientistas. Após ''pausa para revisão'', a agência diz confiar na volta dos estudos

A Organização Mundial da Saúde (OMS) vai retomar os ensaios clínicos com a hidroxicloroquina para o combate à covid-19. Os testes com humanos haviam sido suspensos pela agência das Nações Unidas após a divulgação, no último dia 22,  de um estudo que mostra  que a droga não trata a doença e aumenta o risco de complicações cardíacas. O trabalho, porém, foi alvo de uma avalanche de críticas de cientistas, que questionaram, principalmente, a metodologia adotada.  Também ontem, um novo estudo americano trouxe elementos que sinalizam que, apesar da decisão da OMS, esse debate está longe do fim: uma equipe da Universidade de Minnesota concluiu que a molécula não funciona como alternativa para evitar a infecção pelo Sars-CoV-2.

A retomada dos estudos científicos com a hidroxicloroquina, que é derivada da droga antimalária cloroquina, tem como justificativa uma análise de dados relacionados a óbitos em decorrência da pandemia. “Com base nos dados de mortalidade disponíveis, o grupo executivo informará aos principais pesquisadores que eles podem retomar os ensaios na busca por um tratamento para a covid-19”,  declarou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-chefe da agência. No fim de abril, a OMS lançou uma série de testes clínicos, chamada Solidariedade, com o objetivo de buscar formas de enfrentamento ao novo coronavírus. Os testes com o remédio criado para o tratamento de lúpus e artrite reumatoide foram interrompidos após a divulgação da pequisa na The Lancet.

Segundo Tedros Adhanom Ghebreyesus, a iniciativa foi uma “pausa temporária”, decidida devido a “preocupações levantadas sobre a segurança do remédio”. A “precaução” durou até a revisão dos dados. Agora, o Comitê de Segurança e Monitoramento de Dados do Solidariedade, com base nos números de mortalidade disponíveis, recomenda que “não há razões para modificar o protocolo do estudo”. “Estamos, agora, muito confiantes em relação ao fato de não terem sido observadas diferenças na mortalidade”,  enfatizou Soumya Swaminathan, cientista-chefe da OMS. Nesse braço de pesquisa,  há 3.500 pacientes recrutados em 35 países.

A decisão era aguardada para meados de junho. A agência da ONU, porém, divulgou suas conclusões antes do previsto, depois que a The Lancet se distanciou do estudo, na noite de terça-feira. Em advertência formal, a revista enfatizou que continuam pendentes “dúvidas importantes” a respeito da pesquisa. “The Lancet deseja, portanto, alertar os leitores para o fato de que questões científicas sérias foram trazidas à (sua) atenção em relação a esse estudo”, informou o comunicado. O periódico científico lembrou, ainda, que “uma auditoria independente sobre a fonte e a validade dos dados foi solicitada por autores não afiliados ao Surgisphere”. O trabalho “está em andamento, com resultados esperados em breve”.

Milhares de dados

A Surgisphere é a empresa de análise de dados responsável pelas informações analisadas na pequisa polêmica. O estudo foi apresentado como o maior sobre o tema, com dados de 96 mil pacientes internados entre dezembro e abril em 671 hospitais do mundo. Os autores — incluindo pesquisadores da Harvard Medical School, do Hospital Universitário de Zurique, da Universidade de Utah e da Surgisphere Corporation — compararam voluntários que receberam a hidroxicloroquina com o grupo não tratado com a droga. O artigo mostrou que o remédio não surtiu melhoras, aumentou  riscos de problemas cardíacos, como arritmias, e até de óbito.

Após a publicação, defensores do medicamento e até cientistas céticos sobre o benefício da hidroxicloroquina contra a covid-19 expressaram dúvidas sobre os resultados. Em uma carta aberta divulgada em 28 de maio, dezenas de pesquisadores observaram que uma análise minuciosa do estudo levanta “preocupações metodológicas e sobre a integridade dos dados”.  Os críticos elaboraram uma longa lista de pontos problemáticos, como inconsistências nas doses administradas em certos países e questões éticas sobre a coleta de informações, incluindo a recusa dos autores a darem acesso a dados brutos.

Mais estudos


Além do Solidariedade, outras iniciativas interromperam as pequisas e o uso da hidroxicloroquina e da cloroquina após a publicação na The Lancet. A França, por exemplo, tomou a decisão no último dia 27. Porém, outros, países como Brasil, Argélia, Marrocos, Portugal e Senegal, seguiram com pesquisas e tratamentos.

Apesar de ter decidido retomar os ensaios clínicos, a OMS alertou que ainda não existe um remédio que tenha se saído bem contra a covid-19. “Até agora, não há evidência de que qualquer medicamento reduza a mortalidade em pacientes da covid-19”, afirmou Soumya Swaminathan. A cientista-chefe reforçou, ainda, que a agência permitiu apenas a volta das pesquisas em humanos. “Isso é muito diferente de fazer uma recomendação (de uso)”, alertou, apontando que as investigações em andamento devem mostrar se ele pode ou não ser eficiente contra a doença.

Palavra de especialista

Pressa é inimiga

“As dúvidas e as críticas levantadas em relação ao estudo publicado na The Lancet são muito pertinentes. Os autores já admitiram que usaram dados referentes à Austrália de forma errada, e existem dúvidas quanto à empresa, que se descreve, em seu site, como um grupo de apenas cinco funcionários. Os dados precisam ser liberados e revisados. Essa é uma revista de alto renome, que deve ter falhado na hora de revisar o estudo por seus pares. Isso pode ter acontecido devido à pressa que tem acompanhado a maioria dessas publicações. É muito difícil checar uma quantidade gigante de informações de forma eficaz em tão pouco tempo. Isso é algo que vale para esse tema e para tantos outros estudos que surgirão devido à pandemia. Mas precisamos, também, destacar que a maioria dos estudos tem mostrado que a hidroxicloroquina não se mostra eficaz contra a covid-19. Por isso, é importante continuar os estudos, e que eles sejam feitos da forma adequada para evitar que isso se repita.”, 
Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC), em São Paulo.