Desenvolver uma vacina é tarefa extremamente árdua e demorada. Além da eficácia da proteção, os criadores precisam ter certeza de que a fórmula é segura, o que pode demorar anos. Para fazer com que o sistema imune fique mais protegido do novo coronavírus em menos tempo, especialistas defendem um caminho alternativo: usar imunizações já aplicadas contra outras doenças. Cientistas têm identificado indícios de eficiência nessa abordagem. Entre os testes em andamento, há a possibilidade de fazer com que a tríplice viral (vacina contra caxumba, sarampo e rubéola) e a BCG (tuberculose) protejam trabalhadores da área médica, que estão mais expostos ao Sars-CoV-2. Os autores, porém, ressaltam que a medida funcionaria como um recurso auxiliar.
Boa parte dos estudos tem focado em vacinas que, em sua fórmula, têm partes de vírus vivo, mas inativado. Na semana passada, pesquisadores americanos divulgaram um trabalho opinativo no mBio, periódico da Sociedade Americana de Microbiologia, em que elencam uma série de evidências da possível proteção gerada pela vacina tríplice viral. Eles destacam uma análise feita com 955 velejadores americanos testados positivo para a covid-19, mas que apresentavam sintomas leves. Apenas um foi hospitalizado.
Para os cientistas, o baixo índice de casos graves teria ocorrido porque a tríplice viral é aplicada em todos os recrutas da Marinha americana. “Além disso, dados epidemiológicos recolhidos e analisado sugerem uma correlação entre pessoas em localizações geográficas que rotineiramente recebem essa vacina e uma redução das taxas de mortalidade por covid-19”, explica Paul Fidel Junior, pesquisador da Universidade Estadual da Louisiana e um dos autores do artigo. O fato de a covid-19 ter um impacto menor em crianças corrobora a suspeita de que a tríplice viral pode evitar a infecção pelo novo coronavírus. Isso porque elas foram imunizadas recentemente (Leia Para saber mais).
A hipótese é de que a proteção inesperada ocorra porque as vacinas que usam parte de um vírus inativado geram um efeito chamado imunidade inata treinada. Elas induziriam células imunes existentes no organismo a melhorarem as respostas de defesa do corpo contra infecções subsequentes. Trata-se de uma espécie de treinamento dos leucócitos (células do sistema de defesa) para que funcionem de forma mais ampla. “Vemos isso em pesquisas mais antigas também, que mostraram, por exemplo, que crianças vacinadas para a poliomielite mostraram menores taxas de mortalidade não só por essa enfermidade, mas por outros problemas de saúde”, explica Natalia Pasternak, presidenta do Instituto Questão de Ciência (IQC), em São Paulo.
A especialista brasileira ressalta que os dados obtidos até agora não são suficientes para afirmar o poder de proteção indireta das vacinas com vírus in vitro, mas abrem as portas para mais estudos, principalmente no momento em que o mundo enfrenta uma pandemia. “Precisamos deixar claro que, mesmo que esse efeito seja comprovado, não seria uma vacina para a covid-19. Elas poderiam ser usadas como auxiliares, para ganharmos tempo enquanto uma fórmula de imunização feita exclusivamente contra o coronavírus não surge”, afirma.
Natalia Pasternak também destaca que o uso dessas fórmulas seria uma arma poderosa principalmente para os profissionais da saúde. “Casos mais severos da covid-19 têm atingido pessoas que estão na linha de frente. Acredita-se que isso ocorra porque elas estão expostas a uma quantidade maior de patógenos. Usar essas vacinas pode ser uma maneira de evitar que esses casos mais graves, que podem provocar o óbito, ocorram nesse grupo”, justifica.
Os autores do artigo publicado no mBio também enfatizam a necessidade de realização de mais estudos e defendem que profissionais de saúde e indivíduos em casas de repouso, como idosos, recebam a tríplice viral. “Se os adultos receberam essa vacina quando criança, provavelmente ainda têm algum nível de anticorpos contra sarampo, caxumba e rubéola, mas sem a força necessária para a estimulação do sistema imune inato. Embora esse efeito tenha duração até longa, não é para a vida toda. Portanto, uma vacina de reforço aumentaria os anticorpos contra sarampo, caxumba e rubéola e reiniciaria esse estímulo inato”, explica Paul Fidel Junior.
Para saber mais
Semelhanças genéticas
Um grupo de cientistas lituanos mostrou, em um estudo publicado, na última quinta-feira, na revista especializada Frontiers in Molecular Biosciences, que a vacina tríplice viral pode estar protegendo as crianças da covid-19. Os pesquisadores observaram similaridade genética entre o Sars-CoV-2 com os patógenos-alvo da fórmula de imunização tripla. Há semelhança em 30 resíduos de aminoácidos, que compõem as glicoproteínas e formam a base dos vírus.
O fato justificaria a ocorrência de uma reação imune maior em jovens que entram em contato com o patógeno da covid-19. Uma análise experimental é necessária para apoiar a hipótese, mas a equipe da Universidade de Tecnologia de Kaunas enfatiza que dados detalhados de pacientes com covid-19 na China, Itália e Coreia do Sul também mostram que a doença é menos comum e mais leve em crianças com menos de 10 anos de idade, reforçando a teoria da proteção ampliada.
Vantagem brasileira
Uma das dúvidas que surgem diante da possibilidade do uso de vacinas já existentes para combater a covid-19 é qual a melhor fórmula a ser aplicada. Em um artigo publicado na revista americana Science, um grupo de cientistas defende o uso da fórmula contra poliomielite. “Estudos clínicos em larga escala foram realizados nas décadas de 1960 e 1970. Eles envolveram mais de 60 mil indivíduos e mostraram que essa vacina era eficaz contra a infecção pelo vírus Influenza, reduzindo a morbidade em 3,8 vezes, em média”, justificam os autores do trabalho, que é assinado por Robert Gallo, pesquisador da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e um dos responsáveis pela descoberta do vírus HIV.O mesmo tipo de pesquisa também será conduzida por brasileiros. Cientistas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) selecionaram 1.500 voluntários, todos trabalhadores da área da saúde, que receberão a vacina da pólio ou um placebo. Os testes, com início previsto para julho, serão duplo-cego. Dessa forma, cientistas e voluntários não sabem quem, de fato, foi imunizado, o que gera maior consistência aos dados.
“Todas essas vacinas que usam o vírus vivo atenuado mostram evidências de ativação do sistema imune inato, mas a da poliomielite, junto com a BCG, que também tem sido testada, mostra resultados mais robustos, principalmente a versão oral, que é mais fácil de ser administrada”, detalha Edison Fedrizzi, pesquisador da UFSC e líder da pesquisa. “No Brasil, temos a vantagem de ainda usá-la nessa forma, pois, nos Estados Unidos, o próprio Gallo destacou que essa é uma dificuldade que eles terão que enfrentar, já que usam, apenas, a forma injetável.”
Outra vantagem no uso dessa vacina é que a produção da fórmula é feita em Manguinhos, no Rio de Janeiro, pela Fiocruz. “Então, há quantidade suficiente para usá-la nos voluntários e também teremos acesso a uma quantidade considerável caso a proteção dela à covid-19 seja comprovada”, diz Edison Fedrizzi. Ele conta que, quando a UFSC iniciou o projeto, havia de três a quatro estudos na mesma linha. “Recentemente, contamos 17 pesquisas (…) É claro que o plano principal de todos é ter uma vacina para a covid-19, mas, se conseguirmos estimular essa proteção, teremos um grande ganho no momento e também saberemos que é possível estimular o sistema imune inato. Essa é uma arma importante, que pode nos ajudar bastante no futuro.” (VS)
Palavra de especialista
Necessidade de mais dados
“Esse é um tema que ainda temos visto com cuidado. Tudo indica um estímulo ao sistema imune gerado por essas vacinas, mas precisamos de mais dados. Será interessante, por exemplo, quando for possível comparar países com vacinação maciça com aqueles sem a mesma característica. Só vamos saber com certeza desse efeito com essas análises, que estão sendo produzidas. Isso é importante destacar, pois, recentemente, muitas pessoas viram notícias sobre o bom desempenho da vacina BCG na proteção à covid-19 e quiseram correr para tomá-la, mesmo essa fórmula imunizadora não sendo indicada. Isso devemos evitar, para que não tenha o risco de uma procura sem sentido e exagerada por essas vacinas.”
Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm)
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