icms

Erros na tributação de combustível criaram sistema que favorece a sonegação

"Não é melhor identificar o que há de errado com um sistema do que tentar substituí-lo completamente?", indaga o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 05/09/2018 06:00

A complexidade do sistema tributário estimula a sonegação e favorece a concorrência desleal. Essa realidade é visível no setor de combustíveis. Quase R$ 5 bilhões escorrem pelo ralo todos os anos por meio de empresas criadas para driblar o Fisco e oferecer produtos fraudados. Uma das formas de conter o mercado ilegal é a simplificação dos tributos, a começar pelo ICMS, por meio da alíquota única. Hoje, a distorção é tamanha, que, ao atravessar a divisa de um estado para outro, os motoristas podem economizar R$ 0,63 por litro de gasolina. As mudanças exigem unanimidade dos 26 estados e do DF. Não é tarefa fácil, mas factível se for levado em conta, sobretudo, o interesse do cidadão.

Everardo Maciel

A trajetória dos impostos sobre combustíveis no Brasil mostra inúmeras tentativas de solucionar os problemas tributários do setor, mas, infelizmente, também aponta muitas falhas e imperícia ao longo do caminho. Contrário à tentativa de substituir o sistema, o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, consultor jurídico e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, defende a correção dos problemas. ;Não é melhor identificar o que há de errado com um sistema do que tentar substituí-lo completamente?;, indaga.


Everardo apresenta uma breve história e uma perspectiva da tributação dos combustíveis no Brasil. ;Quero demonstrar que os problemas que temos resultam de opções erradas, não resultam de um defeito sistêmico. Mas, de equívoco incidental. Os erros foram se acumulando;, diz. Até a Constituição de 1988, o país tinha o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e os impostos únicos federais, que incidiam sobre energia elétrica, telecomunicações, combustíveis e minerais, conta. ;Então, alguém diz: vamos ampliar a base do ICMS e reduzir os níveis de cumulatividade;, afirma. O ICMS tinha uma alíquota uniforme em todo o território nacional. ;Aí, decidimos liberar as alíquotas e incorporar as bases de mais fácil cobrança;, diz. Disso resultou que 48% da arrecadação do ICMS decorre de três setores: combustíveis, 23%; energia elétrica, 17%; e telecomunicações, 8%.

Diante desse quadro, o ex-secretário da Receita é enfático: ;Estamos sentados em cima de uma bomba. Qualquer tipo de mudança, e a arrecadação dos estados será danificada. Um exemplo disso é que trocamos a forma de comunicação dos telefones, hoje passamos para o WhatsApp. Resultado: despenca a arrecadação de telecomunicações;, destaca. Se houver um movimento no sentido de fazer com que o consumo de combustíveis fósseis se dirija para os de origem vegetal, provavelmente vai ter queda na arrecadação, exemplifica. ;Passou-se a viver uma coisa muito perigosa, resultante da aplicação de princípios em cima de uma realidade, em vez de conhecer a realidade a partir de seus problemas;, assinala.

Desregulamentação

Na área federal, uma providência boa foi a desregulamentação dos mercados, afirma Maciel. ;Mas, como tudo na vida, teve seus custos. Ato contínuo, na segunda metade dos anos 1990, houve aumento da atividade ilegal, da adulteração, da evasão e da sonegação;, conta. A partir daí, Everardo diz já estar à frente dos problemas, como secretário da Receita Federal. ;Para evitar a adulteração e a sonegação, instituímos a substituição tributária. Mas, houve um movimento de oposição feroz no âmbito do Judiciário, porque o que se queria era segurar a evasão. E para tanto, se fosse necessário, ter uma batalha judicial;, explica.

Com a oposição, optou-se por sair da substituição para a incidência concentrada com o objetivo de tirar o contribuinte do ciclo impositivo. ;Houve novo litígio forte. Passamos a viver uma luta contra a sonegação, na qual o Sindicom (sindicato do setor de combustíveis) nos ajudava bastante;, lembra. Nesse contexto, Everardo ressalta que aparece o episódio da eliminação do monopólio da Petrobras na importação de combustíveis. ;Por uma decisão política;, ressalta.

Segundo ele, a Petrobras recolhia um imposto chamado Parcela de Preços Específica (PPE), que produzia arrecadação de R$ 4 bilhões por ano. ;Era uma arrecadação expressiva, mas a Petrobras recolhia, porque exercia monopólio. Evidentemente que, quando acabou o monopólio, deixou de recolher e tivemos um problema de caixa no Tesouro, por extinção da PPE;, sentencia.

Outra distorção, diz o ex-secretário da Receita, é que não existia PIS e Cofins na importação de combustíveis, somente na produção doméstica, que era mais tributada do que os produtos que vinham de fora do país. ;Isso se chama discriminação territorial inversa;, afirma. Para corrigir a distorção, ele destaca que o governo federal criou a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, chamada popularmente de Cide Combustíveis. ;Fizemos um desenho muito meticuloso da Cide. Tinha alíquota diferenciada por uso ou produto e dava tratamento distinto em função da natureza do combustível, permitindo tributar de forma diferente para fóssil ou tributar menos produto de origem vegetal;, frisa.

Além disso, a alíquota da Cide poderia ser mexida pelo governo a qualquer tempo. ;Portanto, um tributo eminentemente regulatório, com extrema flexibilidade na instituição na alíquota;, diz. Outra característica é que poderia ser ad valorem, incidindo sobre o preço, ou ad rem, sobre a unidade física. Para evitar sonegação, previa, na Constituição, equiparação da pessoa natural à jurídica na importação e incidência monofásica, para prevenir o litígio judicial. ;A destinação da arrecadação é subsídios aos transportes (se isso funcionasse, não teria greve de caminhoneiros, porque antecipamos isso), projetos ambientais e infraestrutura de transportes;, destaca Everardo.

Para surpresa do então secretário da Receita, a proposta foi aprovada sem contestação. ;Isso ocorreu porque se fez uma coisa tecnicamente muito meticulosa;, estima. Além disso, conseguiu-se fazer alterações que se estendiam ao ICMS. Uma lei complementar com definição do ICMS sobre combustíveis e lubrificantes para fins de incidência monofásica. ;Restaurando, portanto, aquilo que lá atrás existia no ICMS, agora previsto na Constituição. Foi uma modificação bastante ampla;, defende.

No entanto, segundo Everardo, houve imperícia com a emenda constitucional 42/2003. ;Um primor de bobagem. Pior artigo de constituição do mundo, completamente hermético e confuso. Nessa confusão, quebraram várias coisas por imperícia;, critica. De acordo com o especialista, não houve má intenção, apenas despreparo técnico. ;Eliminaram a flexibilidade temporal da tributação da Cide e do ICMS, depois partilharam a Cide com estados e municípios, com a emenda 44/2004;, detalha.

Partilhar tributo regulatório, ironiza Everardo, tem a mesma ;inteligência que financiar saúde e educação com pré-sal ou pagar as contas de casa com loteria;. Para piorar o quadro, ocorreu demora legislativa. ;Estamos falando de 17 anos, não de 17 dias. A Lei Ordinária também nunca ocorreu. Junta a imperícia com a preguiça, que é a mora legislativa;, lamenta.

Soluções

Apesar de enumerar os problemas, o ex-secretário também apresenta um roteiro de possíveis soluções para o problema da tributação dos combustíveis. ;Diante dos dados apresentados pela Associação Plural (que representa o setor de combustíveis), notei a enorme dispersão de alíquotas. Entre a máxima e a mínima, há 4,7 vezes, uma dispersão monumental;, comenta. Para solucionar isso, segundo Everardo, é preciso, primeiro, resolver a mora legislativa. ;Não podemos ficar esperando. Já existe um projeto de lei complementar, apresentado pelo senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES) tratando dessa matéria. Alguma coisa aconteceu. Atribuo à greve dos caminhoneiros;, diz.

Outra solução, seria uma Proposta de Emenda Constitucional para consertar a anterior. ;Essa saída é um pouco mais demorada. Mas pode restabelecer a flexibilidade. Com relação à partilha, esqueça, isso é irreversível, lamentável. Não vejo a mínima possibilidade política disso prosperar;, explica. Para concluir, Maciel diz que o problema é o ;velho modelo brasileiro;. ;Fazemos a coisa errada. Em vez de consertar o erro, se busca uma outra solução. Em lugar de partir do problema para a solução, se parte da solução para o problema. Passa a ser uma solução à procura de um problema;, resume.


127 bilhões

Foi o total de litros de combustíveis que o Brasil consumiu em 2017


41%

É a expectativa de crescimento para a demanda de combustíveis até 2030


48%

É a participação de apenas três setores ; combustíveis, energia elétrica e telecomunicações ; na arrecadação do ICMS

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação