Uma lesma gigante transporta o Congresso Nacional nas costas. Ao lado, um Ãndio cavalga numa
cibercobra gigantesca enquanto outro conterrâneo aparece pequenino dentro de bolha de entulhos. Um
peixe extrapola a parede e segue em direção ao teto e dezenas de carinhas sarcásticas pululam
aqui e ali. O conjunto parece surreal num dos muros do Espaço Cultural Renato Russo, na 508 Sul.
Ali, há uma semana, os artistas da lata traçam na parede a rebeldia e a urbanidade. A lesma
representa a indignação desses grafiteiros contra a onda de denúncia onde surfa o Legislativo
desde o inÃcio do ano. Mesmo cansado, depois de dias sob o sol a pintar a área que lhe cabe,
Binho, autor da lesma, encontra ânimo para explicar: "Ela representa a lentidão a que o paÃs
assiste nessas questões polÃticas".
Ouça áudio da entrevista com Binho
Sarcasmo na medida para ilustrar uma das caracterÃsticas do grafite: o protesto. A intenção pode
estar explÃcita nos contornos ou simplesmente escondida na ação de tomar o spray e pintar a
parede do espaço público. Quem passou pela 508 nos últimos dias viu aos poucos se formar um
mosaico de expressões nascidas da imaginação de um grupo de grafiteiros convidados para
transformar os 20 mil m² de muro branco do espaço com colorido explosivo. A ideia: provar que com
grafite também se faz arte.
O mosaico de formas e cores reflete as variedade de origens dos artistas. São Paulo contribuiu com
Binho, ou Fábio Ribeiro, autoridade na prática e pioneiro. Começou a grafitar - sim, o verbo
existe para esses arteiros urbanos - aos 13 anos na capital paulista e hoje é curador da Bienal
Internacional de Grafite. Anderson Ribeiro, o Fokker, vem de Ceilândia e faz parte do grupo de hip
hop DF Zulu, assim como Flávio Mendes, ou Soneca, do Núcleo Bandeirantes. Da França, vieram
Mathieu Notte, condinome Crewer, e Jonathan Rebillard, Jone quando se trata de spray e muros
brancos.
O grupo mudou a cara da parede da 508 Sul no último passo do projeto Encontro, coordenado pelo
francês Octave Unglik, que prefere ser chamado de Kendo e é grafiteiro de carteirinha em Bordeaux
(França). Ele chegou a BrasÃlia há mais de dois meses para organizar série de oficinas, como
parte das celebrações do Ano da França no Brasil. O projeto rendeu aulas de técnica e história
do grafite, exposição em cartaz nas duas galerias da 508 e o mural estampado na fachada.
Dignidade
Com sorriso incontrolável e bem à vontade, Kendo observa os grafiteiros do inÃcio ao fim antes de
concluir que, no Brasil, o verbo grafitar é praticado com mais desenvoltura e o resultado tem mais
acolhimento. "A América Latina tem tradição de pintura popular em mural nas ruas", constata,
lembrando o muralismo mexicano de artistas como Diego Rivera e José Clemente Orozco.
Graças ao movimento hip hop no Distrito Federal, o grafite trocou a definição de vandalismo pela
de arte urbana. "Aprendi coisas no grupo que não se aprende em casa", garante Fokker, dono de um
traço forte e autor da enorme careta verde na parede lateral da 508. "Cresci numa cidade conhecida
pela violência, pela marginalidade. O grafite me salvou disso porque a ideia do grupo é agir no
social. Tem que ter postura, não pode se envolver com drogas".
DICIONÃRIO DE BOLSO
Bomb
Ação ilegal de chegar, pintar e ir embora
Capi
Bico do spray e senha para duas outras gÃrias usadas para descrever os trabalhos dos colegas. O
desenho fat capi tem o traço grosso, o skin capi, traço fino
Crew
Denominação dada a um coletivo de grafiteiros, que pintam juntos e assinam com o mesmo nome
Tag
Nome ou codinome do artista
Toy
Grafiteiro que copia do outro, inexperiente. É de mau gosto fazer isso e quem faz costuma ser
discriminado