postado em 26/06/2009 09:59
Uma cena inusitada rasga o cotidiano de Brasília. É meio-dia e o calor ferve o asfalto do Eixo Monumental. Na fachada sul do Teatro Nacional, dois homens altos se equilibram nas vigas que sustentavam os cubos de Athos Bulcão, tirados para reforma em 2008. Um deles veste terno e não larga o telefone celular. Juntos, eles posam para o fotógrafo do Correio. A imagem, ainda que esquisita, não chega a perturbar o corre-corre da hora do almoço. A cidade não para. "Vamos subir essa rampa. Aquela parede cheia de pregos. É tipo Hellraiser", orienta André X, o baixista de terno. "Você tá parecendo o cara do Matrix", brinca o guitarrista Philippe Seabra. Eles soltam risadas. E o sol não perdoa.
André tem 47 anos de idade. Philippe, 42. Mas o ânimo, percebe-se, é de adolescente. "Hoje temos mais bagagem. Só isso. O nosso humor, a nossa motivação... Nada disso mudou", garante André. Quando a Plebe Rude começava a provocar terremotos no rock brasileiro, eles não tinham nem 20 anos. Era início dos anos 1980. Punk rock? Só na marra para poder tocar. Hoje, quase 30 anos depois, a Plebe chegou à maturidade sem abrir mão da postura punk. "Estamos em paz com a realidade da Plebe. Fazemos música engajada e é isso. Não existe nada falso", diz Philippe.
A fase será celebrada em 2009 com uma colheita farta, que promete saciar os "plebeus" (como são conhecidos os fãs mais dedicados) e conquistar uma geração de iniciantes. O primeiro projeto é o registro de uma apresentação em Brasília, marcada para agosto, no formato de DVD. Serão 22 músicas, entre criações recentes e clássicos. A estreia, O concreto já rachou, de 1985, vai ser lembrada na íntegra. Inicialmente, a ideia era fazer o show em Ceilândia. Mas o projeto (com apoio do GDF e da Brasíliatur) cresceu e, para adequar a estrutura técnica, ocorrerá no Plano Piloto. A Torre de TV foi cogitada, mas descartada para evitar interferências na gravação.Enquanto a data e o local do espetáculo seguem indefinidos, a Plebe testa o repertório em três noites de aquecimento - nesta sexta, sábado e domingo no O%u2019Rilley (409 Sul).
A domingueira, em clima de matinê, será especial. "Vai lembrar as matinês da Zoom na década de 1980. Só tinha gurizada", lembra Philippe. "As meninas jogavam até calcinha", conta André. Apesar da aparência, a Plebe não se deixa enfeitiçar pelo próprio passado. "A banda nunca teve uma carga de nostalgia. As pessoas esquecem que, para a Plebe, a década de 1980 não foi tão feliz assim. Era uma época de gente apanhando da polícia, mandando música para a censura. A ditadura estava aqui na esquina. Era sombrio", conta.
Depois de um período turbulento, marcado pelas desistências de Jander Bilaphra, o Ameba, (guitarra e vocal) e Gutje Woorthman (bateria), o CD R ao contrário (2006) rearrumou a casa. Com o vocalista e guitarrista Clemente (Inocentes) e o baterista Txotxa (ex-Maskavo Roots), a Plebe renasceu coesa. "O que mais prezo nos artistas que admiro é a coerência", diz Philippe, que assina a produção de álbuns de bandas de rock como o 10Zer04 (de Samambaia) e o Superguidis (de Guaíba, Rio Grande do Sul). Mas o discurso crítico, ainda afiado, não é tudo. "As pessoas têm que entender que, apesar de todo o aspecto político e social da Plebe, queremos divertir. Com inteligência", afirma André, que trabalha no Banco Central.
O DVD será apenas o começo. Ainda este ano, o fim do contrato com a EMI dará à banda o controle sobre toda a sua discografia, que possivelmente será relançada. Além disso, estão programados um livro sobre a história do grupo e a participação no filme Federal, com Selton Mello, que estreia em setembro. O carro-chefe da trilha é uma versão em inglês de A ida, que virou The wake. O clipe será gravado em Ceilândia, como manda o figurino. "Quem entende a trajetória da Plebe espera essa coerência. Nós cobramos o mínimo de coerência dos nossos políticos. Nem isso a gente conseguiria ter?", provoca. O concreto vai arder.
PONTO A PONTO // PHILIPPE SEABRA
BRASÍLIA
A Plebe Rude continua refletindo Brasília. Talvez na temática. A Plebe é a única banda de Brasília que se manteve fiel às origens, a ponto de permanecer na cidade. Moramos aqui, vemos tudo de perto. A crise do Senado, por exemplo. Nós sempre soubemos que aconteceram essas coisas. Agora vem essa surpresa, esse escândalo%u2026 A temática da Plebe continua incisiva, porém um pouco mais abrangente. Não sei se hoje em dia eu escreveria uma música tão direta, tão didática quanto Proteção. Mas, se você analisar bem as letras do R ao contrário (2006), aquele protesto, aquela raiva, tudo está lá.
ANOS 1980
A Plebe não viveu os anos 1980 do Rio de Janeiro, que era só praia, bermuda, camisa da Company e Óculos do Paralamas. Era diferente. A ditadura estava aqui na esquina. Era bastante sombrio. Nossa música refletia a angústia de uma geração que estava querendo encontrar sua voz. Vimos todas as mazelas ao nosso redor e encontramos na música uma forma de colocar isso pra for a. É quase terrorismo verbal.
CIDADE ISOLADA
Nos anos 1980, ninguém pensava em tocar cover. O isolamento de Brasília empurrava as pessoas para o lado criativo. Como não havia nada na cidade, era preciso criar do zero. Obviamente, fomos inspirados pelo movimento pós-punk da Inglaterra. Só que, quando você olha para trás, ninguém soava como uma cópia barata de bandas estrangeiras. Eu falava para o Renato Russo: se não fosse Brasília, nada disso teria sido possível.
1980 X 1990
O que mais marcou nos anos 1980 foi a consolidação da música jovem no Brasil como business e entretenimento. Em metade da década de 1990, morei nos Estados Unidos. Quando voltei para o Brasil, em 1999, fiquei meio estarrecido com a consolidação do videoclipe. Com as megaproduções. Aí pensei: "ih, agora lascou". Lembro que vi os Titãs fazendo um programa de tevê que tinha um papagaio falante. Fiquei pensando: como a Plebe vai se encaixar nisso tudo? A gente não consegue mentir. A gente não mente números, não inventa fatos, tem nossa postura e é isso aí.
PLEBE ANOS 2000
Continuamos tocando por aí. Eu continuo produzindo, tenho meu estúdio aqui em Brasília, sou sócio do Fernando Rosa no Senhor F Discos. Continuo investindo nas bandas. A Plebe tem esse romantismo. A gente ainda acredita nisso.
O NOVO ROCK DE BRASÍLIA
A produção musical está efervescente em Brasília. Eu não vejo muita firmeza nos estúdios e produtores, para ser honesto. Mas fico feliz de ver a quantidade de bandas boas, e não falo só de rock. Existe muita produção rolando. Sempre carreguei a bandeira de Brasília, sempre apoio da forma como posso. Mas, no rock, sinto mais firmeza nas satélites. Lá, ainda vejo aquela coisa romântica na veia. E o 10Zer04, de Samambaia, é um grande exemplo disso.
CRISE DA INDÚSTRIA FONOGRÁFICA
No começo dos anos 1980, não havia indústria. Lembro que a Plebe, Capital, Legião só foram gravar em 85. Hoje em dia acho que também não existe nada. Tudo bem que existe essa ferramenta gigante, a internet. Mas todo mundo tem espaço para aparecer e, por isso, é difícil destacar o que é diferente. Mas não consigo sentir pena das gravadoras. Quantas vezes a gente ouve falar de grandes artistas que morreram sem ganhar um centavo? É bom ver esse cenário mudando.
VIDA NO UNDERGROUND
A cena rock mainstream não me interessa nem um pouquinho. Aí são as rádios que definem. Mas o que acontece na cena independente é como se fosse uma volta aos anos 1980, mas sem a característica do som ou do cabelo engraçado. No início dos anos 1980, não tinha mercado, não tinha perspectiva de viver de música. O que servia de motivação era a ânsia de se expressar. Ninguém pensava em ter uma carreira. Nos anos 1990, senti que as pessoas passaram a pensar só nas consequências: em quantos discos vendiam, em quantos shows faziam. Esqueceram da canção. Agora, com o falecimento da indústria, vejo um retorno desse espírito. As pessoas voltaram a ver a música com urgência, e só posso ficar muito feliz por isso.
ROCK INTERNACIONAL
Trabalho muito com música. Nas minhas horas de folga, quero silêncio absoluto. O André X e o Fernando Rosa me atualizam com novidades. Mas ninguém pode cobrir de mim entusiasmo por Franz Ferdinand e Nirvana. Poxa, na minha época eu ouvia Gang of Four e Sex Pistols. Mas não me entenda errado. Fico feliz pra caramba disso (o revival do pós-punk inglês do final dos anos 1970) estar rolando. Para mim, o momento mais excitante da música moderna foi o pós-punk inglês. Isso é inquestionável. Era uma grande quebra de paradigmas. E a principal influência das bandas de Brasília.