Graça Ramos
Especial para o Correio
Seria Brasília ;a primeira expressão visível de um cartesianismo na forma de design;? Para o filósofo alemão Max Bense (1909-1990), sim. Ele esteve duas vezes na cidade, no começo da década de 1960, e a transformou em um dos temas do livro Inteligência brasileira ; uma reflexão cartesiana, publicado em 1965 na Alemanha e traduzido agora, pela primeira vez, no Brasil. Por inteligência cartesiana, entenda-se, diz o autor, ;a decisão pela clareza consciente a despeito de se ter à disposição a terna obscuridade;. Para Bense, a inteligência brasileira caracteriza-se por uma relação dialética entre o orgânico e o geométrico, mas em Brasília prepondera o racional.
Filósofo que aplicou princípios matemáticos à estética, Bense foi um dos principais teóricos do que viria a ser chamado de computer art, surgida na década de 1960. São dele conceitos como estética informacional e estética tecnológica, utilizados nas poéticas contemporâneas. No caso brasileiro, foi importante influência para o movimento da poesia concreta e por ela se deixou contagiar. Foi seu maior divulgador na Europa, em especial na Alemanha, chegando a considerá-la a expressão mais importante do gênero no cenário mundial.
Escrito sob forma que remete a um diário, em momentos com dicção poética, em outros dotado de certa aridez, mas sempre provocador, o texto de Bense é um elogio ao ideário concretista, cujos pressupostos estéticos dominaram boa parte do discurso da cultura brasileira entre as décadas de 1950/60. A aproximação afetiva que manteve com os líderes do movimento, em especial Haroldo de Campos, parece ter permitido ao filósofo um olhar mais generoso sobre a cultura do país em relação a outros teóricos que sobre ela se debruçaram no período. Suas análises expressam confiança e prazer na potência do que denominou ;conservação tropical das ideias humanas;.
Suas visitas à capital federal, uma delas em companhia do poeta João Cabral de Melo Neto, que lhe dedica poema reproduzido na contracapa do livro (leia reprodução), partem do princípio de que, do ponto de vista de uma estética da provocação à inteligência, Brasília é uma criação mental de primeira ordem. Considerando o Plano Piloto um evento visual, um cartaz, Bense se debruça sobre alguns temas comuns a quase todos aqueles que visitaram a cidade nos primórdios. Chega a dedicar pequeno capítulo à terra vermelha que compõe o inventário da construção e o imaginário dos que aqui chegaram primeiro. Diz que o ar da cidade não se resume a ser mero elemento de respiração, sendo um instrumento de percepção. E prega que a cidade exige da consciência um novo sentido para a métrica.
Em seu projeto urbanístico original, o Plano Piloto reivindicou ampliar horizontes, buscando um novo sentido para a concepção do habitar e, por extensão, do ser. O problema é que o futuro iria desmentir Bense e todos aqueles que acreditaram na ideia de que o design corrigiria o conteúdo, o modo de ser dos habitantes, definindo assim uma ;civilização futura;, usando definição do filósofo. Embora o Plano Piloto, graças a políticas de preservação, ainda mantenha o aspecto de cartaz ; expressão do design total, segundo o ensaísta ;, muito da vida da cidade, do urbanismo e da sua arquitetura se pauta hoje pela obscuridade pouco terna, expressa em comportamentos que passam longe da beleza racional.
Clarice e Cabral
Embora incapaz de prever, no caso de Brasília, as contradições que a dominaram, o autor fez questão de reproduzir, na íntegra, premonitório texto de Clarice Lispector. Nele, a escritora, referindo-se aos criadores da capital, afirma que ;eles quiseram negar que a gente não presta;. Ela também comenta: ;Brasília ainda não tem o homem de Brasília;. E, agora, acrescento: dificilmente haverá esse ser, ao menos nos moldes propostos pela utopia inaugural. Talvez por isso mesmo, João Cabral, esse eterno desconfiado das coisas e das palavras, no poema citado, tenha preferido falar do edifício que é a filosofia do que se estender sobre a arquitetura brasiliense.
Bense tece outras análises a respeito da criação da capital que permanecem pertinentes. Segundo ele, a inteligência nacional se encantou mais com a aventura da realização da cidade do que com a ideia dela em si. Até hoje, passados 49 anos, se mantém a separação entre habitantes e ideia original. Moradores ainda têm dificuldade em entender o sentido que norteou a construção modernista, reivindicando a todo custo torná-la uma cidade como as outras. Os puxadinhos nas quadras comerciais, as alterações nas fachadas dos prédios, a dificuldade em preservar alguns de seus elementos plásticos, como os pilotis, tudo simboliza a incompreensão com a proposta brasiliense de uma nova consciência urbana ; e o urbanismo, lembra Bense, é antagônico ao provincianismo.
Em suas anotações, o filósofo faz comparações entre o Rio de Janeiro e Brasília, que terminam exibindo certa complementaridade entre as duas urbes, como aponta Ana Luiza Nobre no posfácio. Para ele, a nova capital significa um sistema, modelo que expõe a sua própria realização, enquanto o Rio de Janeiro representa um organismo. A última vista como prolongamento da natureza habitável e a primeira, da inteligência emancipada, cidades habitadas por dois espíritos diferentes, o tropical e o cartesiano. Uma direcionada aos carros, a outra, apropriada aos pedestres.
Giorgi e Murtinho
No livro, ele discute, com ênfase, a arte de Bruno Giorgi (1905-1993), cuja escultura Guerreiros (1958), situada na Praça dos Três Poderes, os brasilienses apelidaram afetivamente de Candangos. Ao atribuir a Giorgi grande importância dentro do diálogo com as ideias que nortearam Brasília, Bense se mostra observador arguto do processo de transformação por que passa naquele período a escultura do artista. A partir da década de 1950, ele, que havia se iniciado na arte escultórica com uma linguagem ancorada no classicismo, se encaminhou para a tendência cubista, vindo a predominar, mais tarde, e por cerca de 10 anos, uma produção baseada nas formas geométricas. O ápice desse processo é a confecção de Meteoro, instalado em 1968 nos jardins do Itamaraty. Como na dialética brasileira identificada por Bense, Giorgi também mostrará movimentos pendulares ao tratar a forma. Ao fim de sua produção, voltará ao orgânico, regressando à figuração antropomórfica de orientação clássica.
Inteligência brasileira, ou melhor, os vários textos que compõem o livro, não se resume à cidade de ;design cibernético;. Nas quatro viagens que fez ao Brasil, ciceroneado pelo diplomata Wladimir Murtinho, ele visitou o Rio, São Paulo, Belo Horizonte e Ouro Preto, onde conversou com artistas e intelectuais, conseguindo identificar no país o que chamou de inteligência progressista. Em um dos capítulos, fala da profunda impressão que lhe causou Guimarães Rosa, que considera a síntese entre o espírito tropical e o cartesiano. Em outro tópico, discorre sobre Alfredo Volpi, em quem enxerga aquilo que denomina como ;um cartesianismo da simplificação;. Mais à frente, encontra formas sintéticas para analisar a abundância e o desperdício como categorias do tropical.
Bense percorre a cultura brasileira da época com um olhar de confiança, seguro da originalidade e da inovação do pensamento que aqui encontrou. Por isso mesmo, o livro pode deixar alguns leitores entre duas sensações: a nostalgia, por um tempo cuja plenitude nunca se deu, e a frustração, pela época ; carente de conceitos instigadores da consciência ; que hoje o país vive.
A jornalista Graça Ramos é doutora em história da arte pela Universidade de Barcelona
; Trecho do livro
"O Rio é um organismo, Brasília, um sistema, um "self-organizing system", deva-se talvez acrescentar; ela é presumivelmente a primeira cidade, como disse Wladimir Murtinho, que de fato terá um momento de finalização, uma vez que não foi planejada como cidade para crescer, e cujo desenvolvimento, quando extrapolar os limites do Plano, será interceptado por satélites. Patética ; como toda manifestação da razão pura. As duas figuras postadas de pé, criadas por Bruno Giorgi para Brasília, focam num gesto escultural esse pathos da razão pura."