Ricardo Daehn
postado em 08/07/2009 09:17
Quem ainda não conhece a artista plástica Safia, não pode prever a reunião de qualidades da singela octogenária. ;Sabe, é dessas pessoas que não existem;, demarca um dos maiores fãs da escultora, o advogado Eduardo da Gama, que, hoje em dia, trocou as idas à histórica Pirenópolis (próxima à Serra dos Pirineus, a região natal de Celestina Teixeira Siqueira, como Safia é reconhecida na certidão) pelo hábito de ;visitar a Safia; na cidade goiana. Quando invade, com energia, vivacidade e uma dose retraída de nobreza, a sala do admirador, no Lago Sul, Safia prima pela simpatia: ;Tem barro aí, né?;, diz, antes mesmo do bom-dia, ao apontar para a estante crivada de quase 150 criações dela.Passado o tempo das festas do interior nas quais os rapazes brigavam pela companhia de Celestina e o cotidiano de simplicidade, ou melhor, de pobreza, ao lado dos influentes pais (dona Liduvina e seu Martino), Safia materializou, com barro, tanto dessas vivências, que nada parece perdido. ;Eu recebo tanto milagre de Deus;, sintetiza a artista, ao contabilizar o eterno quinhão de felicidade. O tempo de Safia é outro. Não compactua da atribulação que cerca aqueles empenhados em perpetuar a trajetória dela, como os cineastas Armando Lacerda e Waldir de Pina, ambos, há seis meses, arregimentados para criação de um filme. Os mais recentes registros foram feitos, ao final de junho, quando os 80 anos de Safia foram celebrados com catira, exposição, comparecimento de prefeito e até som de berrante.
Empregando determinação, no lugar dos estudos, Safia conta que aprendeu a ler ;só um pouquinho;, mas isso não a impede a avançar nos escritos: ;Tiro poesia e peço pra botarem em letras bonitas (sem garranchos);. Ao não entender ;o modo de falar; de alguns interlocutores, ela reconhece limitações, mas alerta: ;Põe um sentido no que eu tô falando;. Safia se entende melhor, na verdade, é com a modelagem de cascas de guariroba, de melancia, e até de caroços de abacate. No mundo de Safia (uma corruptela para ;Sua filha;;, a expressão de denúncia empregada por terceiros, sempre que se dirigiam aos pais dela),
Safia, que há oito anos esteve na Galeria Athos Bulcão e há menos de dois teve exposição montada no CasaPark, gosta de contato com as pessoas. ;Levaram a meninada para eu contar história e arremedar passarinho;, orgulha-se.
Partindo da confecção de moringas e potes, ela se achava artesã, mas isso até a ocasião em que ouviu ser ;uma boa artista;. Hoje em dia, pote, ela já não faz, ;por nada;. Se há quem compare peças dela às de Antônio Poteiro ou identifique traços classicista no que produz, Safia segue o cotidiano de vender presépios a R$ 120 e pinturas (a R$ 50), em meio a exceções como repassar uma obra adquirida por Ziraldo, por R$ 3 mil. Ciente da arte primitiva de Poteiro, Safia dispara: ;Até hoje, só vi ele num retrato. Fui uma vez na casa dele, mas não estava. Olhei pelo vidro e vi que tem muita coisa lá dentro. Queria comprar uma peça que parecia com a minha, de um tanto, que dava a impressão de que eu tinha trazido de casa. A mesma cabeça dele é a minha;. A modéstia, momentaneamente, abandona a artista, quando ela define o alcance de sua produção. ;Vem gente de todo canto do mundão pra comprar de mim: notícia corre longe, né?;, observa.
Motivos
Avançada para os antigos padrões que cerceavam mulheres, Safia, ainda hoje, desassossega os moradores da Vila Péia (em Pirenópolis). Entre as esculturas, cada vez mais raras (por problemas de saúde) e trocadas pela pintura, é possível flagrar, no meio de motivos maternais e campestres, o erotismo acalentado. Saltam aos olhos, moças desavergonhadas ; uma, por exemplo, com apertado vestido vermelho, deixando à mostra a calcinha branca e outras, confortavelmente expostas, ao habitarem uma tal ;Repúbrica a boa muié brazileira;. No universo gráfico dela estão cavalos negros acariciados por mulheres nuas, de chambre entreaberto, ausência de tapa-sexo e a incorporação de tons fosforescentes para o verde esmeralda e o cor-de-rosa.
Entre a crueza de algumas peças e o firmamento religioso, um terreno cômodo atrelado à obra de Safia, ela elege a própria preferência pelo jogo da sedução, nas imagens que remetem a festas antigas abarrotadas de dança. ;Eu dançava demais da conta, mas a gente vai ficando velha e as pernas ficam duras, né?;, lamenta a artista. ;Beiúda; (ou melhor, abelhuda, alcoviteira) e namoradeira, a mãe de seis filhas lutou pelo aprimoramento da arte iniciada na roça, quando talhava figuras nas mandiocas. Em defesa da felicidade, igualmente, não levou muitos a sério. Recriminada pelas filhas, a viúva que arriscou recente namoro, deu a medida da independência. ;Eu disse: ;Trabalhei tanto para criar vocês e, agora, ainda vou ter que criar vergonha? Eu, não. A gente morre e a terra come tudo;;, finaliza, às gargalhadas.