Diversão e Arte

A luta de classes retratada pelo Nobel de literatura é filmada em cenário brasiliense

postado em 14/07/2009 07:10
Diretores Adirley Queirós e Tiago Mendonça se esmeram nos detalhes da gravação do filme Nós vivendo em locação na CeilândiaO conto Os mudos, escrito pelo argelino radicado na França Albert Camus (1913-1960), mostra a luta social de um grupo de canoeiros num povoado sem localização geográfica definida. Mestres de um ofício à beira da extinção, eles reivindicam melhores condições de vida sem encontrar apoio dos moradores da região. Transposta para a Ceilândia dos dias atuais, a história de Camus serve de base para o curta-metragem Nós vivendo, a mais nova produção cinematográfica da Ceicine.(1) Na trama ceilandense, o conflito é baseado na tensa relação entre patrão e empregados grevistas de uma modesta serralheria da cidade. "Existe um quê de surreal numa oficina de fundo de quintal fazendo greve", constata o diretor Adirley Queiros, 39 anos. Com o paulista Tiago Mendonça, diretor de Minami em close-up, prêmio de júri popular no último Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, assinam a direção do conto no livro O exílio e o reino (1957), o último de Camus publicado em vida. "São seis serralheiros que não têm a perspectiva marxista de consciência de classe. A luta está entranhada no processo fílmico mesmo, entre os atores, na perspectiva de câmera, e também na estética da produção. Estamos tentando fugir da idealização desses sujeitos, sem paternalismos", explica Queiros. Há um ano e meio, atores amadores têm participado de oficina de arte dramática encabeçada pelo veterano de palcos brasilienses, o ator e diretor Humberto Pedrancini (também no filme como Batista, dono da serralheria dos insurgentes) e Wellington Abreu, da companhia Hierofante. É a chance de a jardineira Antônia Maria dos Santos, 48 anos, moradora de Santo Antônio do Descoberto (GO), realizar um sonho de criança. Equilibrando-se entre o emprego de doméstica e o de vendedora de doces, com alguma experiência dramática acumulada em montagens do grupo de teatro de Plínio Moska, ela encarna o primeiro papel no cinema como Marta, dona do quiosque onde os serralheiros se encontram para discutir os problemas do emprego. Entregue de corpo e alma ao papel, Antônia varria o chão do lugar sem que nenhum equipamento de captação estivesse ligado. "Acho ruim receber a freguesia com o bar nesse estado", confessou, aos sussurros. Quem também se deixou contaminar pelo personagem foi o ator Wellington Abreu, 34 anos, que respondia às perguntas em primeira pessoa: "Meu nome é Assis. Tenho 40 anos, sou serralheiro e estou 'parado' há 20 dias. Vim até o bar encontrar os amigos e a dona do boteco está nos cobrando o fiado", ensaia diante da reportagem. Assis é o personagem em torno do qual gira boa parte da trama. Sujeito de poucas palavras, vive angustiado pela nova situação caseira em que a esposa, a manicure Sílvia (personagem de Marlete Fernandes) tem de assumir o orçamento doméstico prejudicado pela greve. Experimento A produção ceilandense, a primeira em película 16mm planejada para transfer em 35, mistura sem distinção, técnicos amadores da Ceicine e profissionais experientes em produções locais como Chico Craesmeyer (som), Adriana de Andrade (continuidade) e o diretor de fotografia André Carvalheira, o Xará. Carvalheira achou apropriado um experimento fotográfico fortemente baseado em manipulação de pós-produção que já vinha maturando há algum tempo desde uma troca de figurinhas com o fotógrafo brasileiro César Charlone. Em set, a fotografia, trabalhada com o mínimo de equipamentos, é pensada para receber dessaturação das cores e grãos maiores que o habitual, dando a impressão de uma película "suja". "Desejamos também sugerir referências do metal com que trabalham os serralheiros", explicou o fotógrafo. Ceilândia, considerada mais um personagem do que somente cenário, é representada em sequências poéticas dos personagens praticamente forçados a reencontrar a cidade por meio do ócio causado pela paralisação. "É a metáfora da Ceilândia moderna com metrô, tendência à verticalização, especulação imobiliária e assepsia da paisagem urbana", conclui Queiros. O curta, com duração planejada para 18 minutos, foi financiado com recursos do Fundo de Apoio a Cultura (FAC) e do Ministério da Cultura e contou com orçamento de produção de R$ 140 mil. 1 - CEICINE Fundada em 2006, a produtora se dedica a produzir filmes e videoclipes de artistas da Ceilândia. Nós vivendo é o terceiro filme do grupo. Os dois anteriores são o curta-metragem Rap, o canto da Ceilândia (vencedor de melhor curta-metragem 35mm do 35º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro) e o longa Fora de campo, feito com recursos do concurso DocTV, da EBC. Baseado na história real do diretor Adirley, que chegou a atuar como jogador de futebol na juventude, acompanha a trajetória de seis jogadores profissionais do DF. Na prática, a Ceicine funciona também como um grupo de discussão sobre imagem e periferia. Albert Camus Nascido em uma família pobre na Argélia, o escritor e filósofo sofreu angustiantemente por ter continuado os estudos ao invés de trabalhar para ajudar no orçamento familiar. Morou e estudou durante anos turbulentos em Paris, por algum tempo separado da esposa e dos filhos por causa da Segunda Guerra Mundial. Com uma biografia assim, carregada de preconceitos, Camus fixou-se em personagens marginalizados tanto pela origem quanto pela classe social. Recebeu o Prêmio Nobel de literatura em 1957. Três anos depois, morreu em um acidente de carro na França.

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