Pense numa música chamada Wakaru, com flautas de caboclinho, linha de baixo de trance, uma rabeca e um cara falando japonês meio errado. Pule uma e escute Shakespeare, de Cadão Volpato (Fellini), cantada suavemente em francês por Marion Del;Eite. Aumente o volume. É hora de J.P.S., faixa que transita entre o forró e o dancehall, com um endiabrado Silvério Pessoa dizendo para o mané deixar de leseira e aprender com Jean-Paul Sartre, ;cabra seco, descarado, de cabelo melequento/ pegou Simone, Roberta, Valerie, Nancy e Paulete/ Arlete, Carla, Marie, Teresa, Helena e Fanny;. Bem-vindo ao mundo do DJ Dolores.
Sergipano que mora em Pernambuco e vive por aí, DJ Dolores (aka Helder Aragão) é fascinado pela cultura de música barata, aquelas canções toscas que ele encontra nos camelôs do Recife e o enchem de alegria. De certa forma, elas estão presentes em 1 real, o terceiro disco da carreira, lançado em 2008 no mercado europeu e norte-americano pela gravadora belga Crammed (a mesma de Bebel Gilberto e Cibelle), e que agora chega ao Brasil pelo selo Arterial Music, com distribuição da Rob Digital. O ótimo álbum, que já lhe rendeu três turnês pela Europa e uma pelos Estados Unidos, é um apanhado de referências, mesmo. Até porque a música que ele faz é consequência disto: da experiência de estar vivo e circulando pelo mundo.
;Coisa exóticas;
Mais dançante que os dois discos anteriores (Contraditório, de 2002, e Aparelhagem, de 2005), 1 real tem muito de Pernambuco, sim, e é também, digamos, o mais ;internacional; dos três (não, ele não merece o rótulo de ;world music;, termo tão desgastado e geralmente associado a ;coisas exóticas; para gringo ver). Com mais letras e canções, o CD de 12 faixas (há um vídeo como bônus) passeia pelo forró (J.P.S.), o afrobeat (Cala cala), a música caribenha (Tocando o terror), a surf music (Flying horse); Fala de vida, diversão, pobreza, diferenças de classes.
;Cidadão do mundo com CEP do Recife;, mais produtor do que DJ, Dolores acredita que música tem vida própria ; basta segui-la. E ele só segue sua intuição. Até quando compõe sob encomenda, como no caso de Saudade e Mutant child (as duas feitas para uma edição europeia dos quadrinhos de Wolverine, com trilha sonora). Segundo o músico, J.P.S. recorre ao tema proposto em Pablo Picasso, da banda Modern Lovers. Cala cala seria inspirada em Fela Kuti e The mind inspector em Satie. Números (;Uma imagem na parede/ dois corpos entrelaçados/ três molhadas lágrimas/ quatro segredos trocados;), ele diz, é sua A velha debaixo da cama (forró de Jonas de Andrade que fez sucesso nos anos 1970).
Já Tocando o terror ; com levada latina, guitarra poderosa de Gabriel Melo, uma voz masculina (Tiné) e três femininas (Mônica Feijó, Claudia Beija e Isaar) ; fala do ;colapso sentimental que certas garotas são capazes de provocar nos rapazes; e teve como ponto de partida Femme fatale, de Lou Reed. ;Só que a personagem é uma garota do subúrbio do Recife, assídua frequentadora da praia, cabelos descoloridos, uma tatuagem barata e pouco senso de ética amorosa;, ele define.
Proletariado (;Justiça? Que justiça?;), por sua vez, aborda a exploração do ser humano, o abismo entre classes sociais, a falta de oportunidades, a violência. ;Compus esse tema na semana em que, por causa de um assassinato envolvendo um menor, iniciou-se uma equivocada manifestação para reduzir a maioridade penal no Brasil;, conta Dolores, que recheou o encarte do disco com reproduções de apelos de pedintes. Sim, você já viu isto antes: ;Qualquer trocado serve. Deus lhe abençoe;, ;Aceito vale, passe e tickes (sic);, ;Por favor, ajude-me com qualquer contribuição. Deus li (sic) pague;. Bem-vindo ao mundo real.
J.P.S.
;Você que anda na praia, puxa ferro todo dia/ à noite vai pra folia e é chamado de mané/ As meninas não te querem, seu caô é um desastre/ ora, deixe de leseira: aprenda com Jean-Paul Sartre: / um nanico fedorento, enfezado e abusado/ cabra seco, descarado, de cabelo melequento/ pegou Simone, Roberta, Valerie, Nancy e Paulete/ Arlete, Carla, Marie, Teresa, Helena e Fanny;
Proletariado
;Justiça, que justiça? Se é sempre a mundiça entupindo as prisões/ E quem é que apanha? Quem passa fome?/ Sempre desempregado, a caminho do crime/ Quem está fora da festa, quem bate com a testa no muro da grana?/ Quem mora num buraco, quem carrega o saco/ quem é o culpado?/ Pra quem é a polícia?;