Ricardo Daehn
postado em 22/07/2009 08:06
São Paulo - Há três anos, o cineasta Heitor Dhalia tem investido quase duas horas diárias, seis vezes por semana, nos estudos de dramaturgia. O resultado da dedicação já desponta no terceiro longa-metragem, À deriva, que, contrariando o tÃtulo, segue trajetória bem encaminhada. Associado à produtora de Fernando Meirelles (de Cidade de Deus), o filme não só arrebatou o empenho do astro internacional Vincent Cassel, como ainda competiu em Um Certo Olhar, importante mostra do Festival de Cannes. A estreia em circuito nacional, com 40 cópias, será no próximo dia 31.
A natureza do desejo, desacordos por sentimentos pessoais, "egoÃstas e distintos", e amadurecimento estão no centro do novo filme, assumidamente dotado de tom autobiográfico. "Não tenho julgamento moral sobre o assunto. Nas questões de relacionamento fica difÃcil apontar erros e acertos, quando o tema é famÃlia. Não queria julgar ninguém: só relatar uma história sobre dissolução familiar e que aponta novo começo para cada personagem. O tema da confiança e da traição está presente o tempo todo", observa o diretor pernambucano, de 39 anos.
A idade, por sinal, é fator que norteia muito das ações de À deriva. Foi pelo encantamento, com "um lado lolita e traços de criança, ao mesmo tempo, 'anjo e demônio convivendo na mesma pessoa', como diria Nabokov", que o diretor escalou a protagonista estreante, Laura Neiva, à época das filmagens com 14 anos. Depois de 600 testes, Dhalia não achava ninguém para a personagem da menina, em rito de passagem, batizada Filipa. Com uma foto, "não conseguia tirar o olho" de Laura. "Se escolhesse mal, seria um fiasco", ressalta. O inequÃvoco grau de verdade obtido pelo trabalho com atores adolescentes e crianças foi uma das metas. "O diretor François Tuffaut dizia isso: 'Você não tem nada igual à pureza de uma criança na tela'. Pelo poder dela, você se rende imediatamente."
Outro olhar
"Um dia chega uma menina de 14 anos que faz algo superbonito e mais interessante do que um ator com 20 anos de carreira e três prêmios Oscar alcança", completa o experimentado e carismático ator francês Vincent Cassel. Dono de impressionante fluência em português, favorecida pelas viagens ao Brasil, o ator gostou da engenharia por trás do cinema nacional. "O pessoal da equipe é mais concentrado, preparado. Os elementos do filme, já conheço desde criança: há divórcio, as férias no mar e uma felicidade apenas aparente. O olho do Heitor é que gera o interesse. As melhores direções vêm de quando não te falam nada. Se as pessoas têm que falar, é porque existe um problema. Se todos da equipe fazem um mesmo filme, se dispensam as indicações", avalia.
O cinema da argentina Lucrecia Martel (de O pântano e A menina santa) foi uma referência para Heitor Dhalia. "Sou muito fã do cinema dela. Mas é muito ácida na abordagem e, como era um filme que tinha a ver com minha famÃlia, lidei com mais delicadeza", observa o diretor dos anteriores Nina e O cheiro do ralo. Executado o roteiro feito em parceria com Vera Egito (do curta Espalhadas pelo ar), o diretor conta que, com filmagens entre Búzios e Arraial do Cabo, tinha intenção de inovar no primeiro filme "de externas e mais realista". "A mudança de território foi um desejo. Gosto de correr riscos. Existem fases para se desenvolver temas, mas há o risco da acomodação e da oferta daquilo que esperam de você. Não sabia se eu era capaz de fazer um filme tão delicado e sutil", diz.
Cinco perguntas - Vincent Cassel
"Quando você gosta de um idioma, é muito mais fácil aprender", diz, em bom português, Vincent Cassel. Filho do célebre ator Jean-Pierre Cassel, o astro de Inimigo público nº 1, do impactante IrreversÃvel e de Treze homens e um novo segredo, deixa transparecer, na conversa, a educação de ouro: "Uma qualidade do meu pai foi o relaxamento em cena. Não penso que ser ator é algo maravilhoso, fora do mundo". Brincalhão, ele diz nunca se "levar a sério". Dono de extrema simplicidade, Cassel vem ao Brasil com regularidade. Deixou a prática da capoeira um pouco de lado, mas ainda é movido pelo hip hop. Casado com a estrela Monica Bellucci, se mostra avesso à extrema badalação. Premiado com o importante César, é sincero quando fala do reconhecimento, ao interpretar o gângster Jacques Mesrine: "Na carreira, não vai mudar nada. Já trabalho e trabalhei com quem quis. Mesrine deu fim a uma série de tipos que fiz de personagens maus". Com vários projetos engatilhados, ao menos mais dois no Brasil, Vincent Cassel, aos 42 anos, não preza a verborragia no cinema francês nem gosta dos filmes em que ecoa a nouvelle vague. "Sempre busquei produções diferentes dessas. O pacto dos lobos e IrreversÃvel são espetáculos que têm algo a mais embutido no meio", destaca.
O entrosamento com a capoeira e o hip hop seguem firmes?
Abandonei a capoeira por problemas no ombro e no quadril (risos). Mas a capoeira é um treinamento que faz bem para os atores, pelo estÃmulo à improvisação que oferece. É um jogo a mais, que tem malandragem. Já o hip hop foi a música da minha geração, cresci com ele. Meu irmão faz rap e vai lançar disco também no Brasil. Gosto do hip hop de Rappin' Hood, Marcelo D2 e Racionais MCs. São pessoas fortes e afastadas do sentido comercial.
Como foi o trabalho com Debora Bloch e o diretor Heitor Dhalia?
Heitor se concentra só na história. O resto sempre é delegado a pessoas de confiança. Há muito detalhamento na hora da finalização visual. Não se tem dinheiro, nem tempo, mas as pessoas trabalham muito bem. Foi o que aprendi aqui. O desenho de produção é perfeito, não passa a impressão de ser artesanal. Heitor é dos diretores tranquilos que encontrei. É como (David) Cronenberg (de Senhores do crime), com o roteiro aberto a colaborações até quase na edição. No Brasil, há uma diferença de sensualidade na luz e no movimento das pessoas. Com relação a Debora, eu não a conhecia, já que não vejo tevê nem na França. As atrizes latinas são diferentes, mais livres. Monica (Bellucci) também é latina. Elas são bem diferentes das americanas. O corpo está livre e não há o que esconder. A relação é orgânica, fácil, por não haver coisas proibidas.
No filme há erotização da menina em relação ao pai?
Tem um pouco de sedução entre os dois, sim. Eu tenho uma filha: o pai vai ser a imagem do homem para o futuro. Há uma conexão que não é sexual, mas existe uma maneira de a filha olhar o pai que é superforte. Você não controla o julgamento da criança, vai sempre acontecer. Como pai, você tem que oferecer o máximo de você, mas, sendo um homem, inevitavelmente falhará. No filme, há algo de casal, desde o primeiro dia. É algo que sempre reprimi. Laura (Neiva) obviamente tem muito carisma e você quer só olhar para ela e brincar. Deixei isso acontecer. As coisas acontecem, e é melhor não julgar.
Como você e Monica despistam a imprensa?
Ninguém sabe exatamente onde estamos. Há um pouco mais de descanso, porque na França não vigora a cultura dos papparazi. Se você quer jogar, esse jogo é perigoso, mas se você quer ficar um pouquinho fora, tá tudo bem.
Quais os próximos projetos?
Vou ter que sumir um pouquinho (risos). No Brasil, há o plano de uma comédia romântica com Monica, que fala portulhano (risos), da qual serei produtor. O diretor Hany Abu-Assad (de Paradise now) vai rodar o Onze minutos, adaptado de Paulo Coelho, comigo, Alice Braga, Mickey Rourke e Meryl Streep. Mas, antes, na Austrália, terei um filme de Andrew Niccol, The cross, com Orlando Bloom e Olga Kurylenko (de 007 - Quantum of solace).
Registro de lembranças
Despreocupado com o registro de uma época, Heitor Dhalia não queria fazer um almanaque, na linha "Colha, estamos nos anos de 1980". O filme, na verdade, captura o registro de lembranças. "Trata da primeira grande mudança na instituição familiar brasileira, que formatou a geração de filhos de pais separados. Minha grande questão hoje é: "A minha mãe vai ver, né?", ri o diretor. "Minha tia ligou para ela e disse: 'Quero ver a sua personagem'. Não é nada disso, mas, ao mesmo tempo, não deixa de ser", gargalha.
Longe da imagem bem-humorada que evoca, a atriz Debora Bloch responde pela mãe da trama, Clarice. "Uma vez li que a câmera de cinema lê pensamentos, em relação à atuação. Atendi ao chamado de um registro supernaturalista, de verdade. Quis trabalhar no campo interiorizado. Há muito material emocional em cena: a personagem diz bastante quando não está falando. Minha partitura é o roteiro. Nele, a imagem de uma mãe bêbada, jogada no chão, e encontrada pelos filhos, fala mais do que qualquer diálogo. O cinema lhe proporciona isso", explica a atriz.
Satisfeita por notar como um canal "para que as mulheres da minha geração se vejam retratadas no cinema", Debora Bloch reforça que nada foi feito "de fora para dentro", sem fugir ao script. "O estado daquela mulher aparece aos poucos. A gente percebe que ela não está sobre as duas pernas, que tem angústia e infelicidade", avalia.
Entrevista com o cineasta Heitor Dhalia sobre o filme À deriva