O esforço oportunista fica visível nas prateleiras das grandes livrarias. Cada vez que um livro é adaptado para o cinema, ele também ressuscita das sombras das estantes dos fundos e volta às ilhas de centro das lojas. Às vezes, revestido com uma capa nova, de preferência bem parecido ao cartaz do filme. E fica ali, nas luzes, ao lado dos lançamentos na expectativa de que o longa-metragem seja suficientemente instigante para levar o público à livraria. Mas é difícil competir com o cinema.
Porém, na maioria das vezes, quem sai ganhando é a telona. O filme acaba sendo visto porque o livro foi lido antes. Que o diga Harry Potter. Quando a saga do bruxinho inglês chega às salas de cinema, o volume correspondente está devidamente lido e esmiuçado pelos fãs. Dos três filmes em cartaz na cidade e adaptados de livros, Harry Potter e o enigma do Príncipe sai na frente em quantidade de público e leitores. Anjos e demônios também se beneficiou do sucesso do livro e Budapeste, adaptado da obra homônima de Chico Buarque, atrai mais pela identidade do autor da história do que pelo trabalho literário. Já a peça Simplesmente eu. Clarice Lispector conta com alguma familiaridade do público com a escritora, mas não escapa ao fato de que a atriz Beth Goulart é mais conhecida entre os jovens que a consagrada escritora.
O servidor público Nilton Machado, 62 anos, pensou em recorrer ao livro para esclarecer dúvidas plantadas pelo filme Budapeste. ;Achei confuso. Me disseram que quem leu o livro entende melhor o filme.; A mesma dificuldade não convenceu a professora de história Dilma Lemos, 55, a migrar para a literatura de Chico Buarque. ;Gostei do filme, mas não fiquei com vontade de ler o livro;, diz. ;Acho que um filme só leva o jovem para a literatura se ele já for dado à leitura. Senão, o jovem não vai.; A tradutora Lorena Santos, 37, é mais otimista. ;As duas mídias se apóiam. Se o filme conta bem a história, a pessoa pode se sentir estimulada. Os caminhos para a literatura precisam ser abertos e os caminhos para o cinema já estão abertos.;
Iniciação
O fenômeno Harry Potter é um caso curioso nesse cenário de trânsito entre o cinema e a literatura. A história serviu de iniciação ao hábito de ler para uma geração de pequenos leitores que hoje fazem fila na porta dos cinemas a cada transposição para as telas. O estudante Felipe Nobre, 22, acaba de passar no vestibular para biblioteconomia. Não escolheu o curso por acaso. Graças ao bruxo inglês, Felipe descobriu a leitura. ;Eu não gostava de ler, mas os livros do Harry Potter me fizeram gostar. Hoje eu tenho um respeito pelos livros e até gostaria de escrever;, conta o rapaz, que leu o primeiro volume de O senhor dos anéis depois de se encantar com o filme. A advogada Denise Garcia, 24, passou pelo mesmo processo. Leu os seis volumes em três meses e não perde os longas. Não gostou dos quatro primeiros e aprovou os dois últimos. ;Ver o filme depois de ler é interessante para personificar o personagem, conferir se o diretor imaginou a mesma coisa que você;, diz. O movimento contrário, no entanto, é mais difícil. Denise assistiu Anjos e demônios e gostou muito. Já o livro não desceu muito bem. ;Não gostei do estilo de escrita.;
[SAIBAMAIS]A escrita e o estilo são matérias primas nas mãos da atriz Beth Goulart para interpretar Clarice Lispector. ;Você que me lê, que me ajude a nascer;, dizia a autora de A hora da estrela, único livro de Clarice que já passou pelas mãos dos namorados Ana Paula Sousa, 25, e Marcelo Rocha, 24. O casal de economistas leu o livro na escola e nunca esqueceu a história de Macabéia, por isso decidiu conferir a peça. ;Foi o melhor livro que li e achei que, por isso, a peça poderia ser interessante!”, diz Rocha. Mas a admiração não leva necessariamente à livraria. Fã do escritor russo Fiódor Dostoiévsky, ele também assistiu à montagem de Os demônios, mas a adaptação do diretor Antônio Abujamra não o conduziu ao livro. Já Ana Paula leu Estação Carandiru, de Dráuzio Varella, depois de assistir ao filme de Hector Babenco. ;O livro aprofunda. Gostei do filme, mas quis ler para aprofundar o tema.;
Veja entrevista em vídeo com a atriz Beth Goulart
; Leia trechos
Budapeste, de Chico Buarque
"Devia ser proibido. Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira. Certa manhã, ao deixar o metrô por engano numa estação azul igual à dela, com um nome semelhante à estação da casa dela, telefonei da rua e disse: aí estou chegando quase. Desconfiei na mesma hora que tinha falado besteira, porque a professora me pediu para repetir a sentença. Aí estou chegando quase; havia provavelmente algum problema com a palavra quase. Só que, em vez de apontar o erro, ela me fez repeti-lo, repeti-lo, repeti-lo, depois caiu numa gargalhada que me levou a bater o fone. Ao me ver à sua porta teve novo acesso, e quanto mais prendia o riso na boca, mais se sacudia de rir com o corpo inteiro. Disse enfim ter entendido que eu chegaria pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha, depois um joelho, e a piada nem tinha essa graça toda.
Tanto é verdade que em seguida Kriska ficou meio triste e, sem saber pedir desculpas, roçou com a ponta dos dedos meus lábios trêmulos. Hoje porém posso dizer que falo o húngaro com perfeição, ou quase. Quando de noite começo a murmurar sozinho, a suspeita de um ligeiríssimo sotaque aqui e ali muito me aflige. Nos ambientes que frequento, onde discorro em voz alta sobre temas nacionais, emprego verbos raros e corrijo pessoas cultas, um súbito acento estranho seria desastroso. Para tirar a cisma, só posso recorrer a Kriska, que tampouco é muito confiável; a fim de me segurar ali comendo em sua mão, somo talvez deseje, sempre me negará a última migalha."
Harry Potter e o enigma do príncipe, de J. K. Rowling
"Era quase meia-noite e Primeiro-Ministro estava sentado sozinho em seu gabinete, lendo um longo memorando que resvalava pelo seu cérebro sem deixar o menor registro. Aguardava um telefonema do presidente de um país longínquo e, entra a preocupação se o infeliz iria telefonar e a tentativa de reprimir lembranças do que for a uma semana difícil, longa e cansativa, não sobrava muito espaço em sua mente. Quanto mais tentava focalizar as palavras na página diante dele, tanto mais claramente via o rosto triunfante de um dos seus adversários políticos. O homem aparecera no telejornal daquele dia não somente para enumerar os terríveis acontecimentos da semana anterior (como se alguém precisasse de lembretes) como também para explicar que a culpa de cada um deles e de todos, sem exceção, cabia ao governo.
O pulso do Primeiro-Ministro acelerou só de pensar nessas acusações, porque não eram justas nem verdadeiras. Como é que o seu governo poderia ter impedido aquela ponte de ruir? Era um absurdo insinuarem que não estava gastando o suficiente na conservação de pontes. Essa tinha menos de dez anos, e os maiores especialistas não sabiam explicar por que rachara exatamente ao meio, projetando dezenas de carros nas profundezas do rio. E como ousavam sugerir que aqueles dois homicídios bárbaros divulgados com estardalhaço eram consequência da falta de policiamento? Ou que o governo deveria ter previsto o furacão inesperado que ocorrera no oeste do país e causara tantos prejuízos a pessoas e propriedades? E seria culpa sua que um dos ministros do segundo escalão, Herberto Chorley, tivesse escolhido logo esta semana para agir tão bizarramente que agora iria passar um bom tempo em casa?"
Anjos e demônios, Dan Brown
"O físico Leonardo Vetra sentiu cheiro de carne queimada e sabia que era a sua. Levantou os olhos, aterrorizado, para a figura sombria que o dominava.
- O que você quer?
- La chiave ; respondeu a voz rascante. ; A senha.
- Mas eu não;
O intruso curvou-se de novo para a frente, pressionando com mais força o objeto em brasa no peito de Vetra. Ouviu-se um chiado de carne grelhando.
Vetra gritou alto, agoniado.
- Não existe senha nenhuma! ; E sentiu que mergulhava na inconsciência.
O rosto do homem encheu-se de uma fúria contida.
- Ne avevo paura. Era o que eu temia.
Vetra esforçou-se para manter os sentidos, mas a escuridão envolvia-o pouco a pouco. Seu único consolo era saber que o agressor jamais obteria o que viera buscar. Um momento mais tarde, porém, o homem fez aparecer uma lâmina e ergueu-a diante do rosto de Vetra. A lâmina adejou no ar. Precisa. Cirúrgica.
- Pelo amor de Deus! ; gritou Vetra.
Mas era tarde demais.
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***
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Do alto da pirâmide de Gizé, a jovem riu e voltou-se para ele, lá embaixo, chamando-o.
- Ande, Robert! Devia ter me casado com um homem mais moço! ; O sorriso dela era mágico.
Ele tentou acompanhá-la, mas suas pernas pesavam como se fossem feitas de pedra.
- Espere ; pediu. ; Por favor;
Enquanto subia, sua vista começou a turvar-se. Seus ouvidos latejavam. Preciso alcançá-la! Mas, quando olhou de novo para cima, a mulher desaparecera. Em seu lugar havia um velho de dentes estragados. O homem encarou-o, os lábios torcendo-se em uma careta melancólica. E ele deixou escapar um grito de angústia que ressoou pelo deserto.
Robert Langdon acordou sobressaltado do pesadelo. O telefone ao lado de sua cama estava tocando. Tonto, levou-o ao ouvido.
- Alô?
- Gostaria de falar com Robert Langdon ; disse uma voz masculina.
Langdon sentou-se na cama e tentou clarear sua mente.
- Aqui; é Robert Langdon ; e apertou os olhos para o mostrador do relógio digital. Eram 5h18 da madrugada.
- Preciso encontrá-lo imediatamente.
- Quem está falando?
- Meu nome é Maximilian Kohler. Sou um físico de Partículas Discretas.
- Um o quê? ; Langdon mal conseguia se concentrar. ; Tem certeza de que procurou o Langdon certo?
- O senhor é professor de Simbologia Religiosa na Universidade de Harvard. Escreveu três livros sobre simbologia e;
- Sabe que horas são?
- Peço desculpas. Há uma coisa que precisa ver. Não posso explicar pelo telefone.
Um resmungo conformado escapou dos lábios de Langdon. Aquilo já acontecera antes. Um dos perigos de se escrever livros sobre simbologia religiosa era o chamado de fanáticos querendo que ele confirmasse o último sinal que haviam recebido de Deus. No mês anterior, uma stripper de Oklahoma prometera a Langdon a melhor sessão de sexo de sua vida se ele pegasse um avião até a cidade dela para verificar a autenticidade de uma figura cruciforme que aparecera magicamente nos lençóis de sua cama. O sudário de Tulsa, como Langdon a chamara.
- Como conseguiu o número do meu telefone? ; Langdon tentou ser amável, apesar da hora.
- Na Internet. No site do seu livro.
Langdon franziu a testa. Tinha certeza de que o número do telefone de sua casa não constava do site de seu livro. O homem obviamente estava mentindo.
- Preciso vê-lo ; a voz do outro lado insistiu. ; Vou pagar bem.
Agora Langdon estava ficando furioso.
- Sinto muito, mas eu;
- Se sair agora, pode estar aqui por volta de;
- Não vou a lugar nenhum! São cinco horas da manhã!
Langdon desligou e caiu de volta na cama. Fechou os olhos e tentou adormecer novamente. Não adiantou. O sonho estava entranhado em sua mente. Relutante, vestiu um roupão e desceu.
Robert Langdon perambulou descalço por sua casa deserta, uma construção vitoriana em Massachusetts, segurando seu remédio habitual contra a insônia: uma caneca de chocolate instantâneo fumegante. O luar de abril filtrava-se pelas janelas da sacada e formava desenhos nos tapetes orientais. Os colegas de Langdon sempre brincavam que o lugar parecia mais um museu de antropologia do que uma casa. As prateleiras estavam cheias de artefatos religiosos de todo o mundo ; um akuaba de Gana, uma cruz dourada da Espanha, um ídolo cicladense do Egeu e um ainda mais raro boccus de Bornéu, o símbolo da perpétua juventude de um jovem guerreiro.
Sentado em uma arca de latão maharishi e saboreando o chocolate quente, deu com o seu reflexo nas vidraças das janelas. A imagem estava distorcida e pálida; como a de um fantasma. Um fantasma envelhecido, pensou, sendo cruelmente lembrado de que o seu espírito da mocidade vivia dentro de um invólucro mortal.
Apesar de não ser propriamente bonito no sentido clássico, Langdon, com seus quarenta e cinco anos, possuía o que as colegas do sexo feminino classificavam de um encanto "erudito" ; mechas grisalhas misturadas ao espesso cabelo castanho, perspicazes olhos azuis, uma voz grave atraente e o sorriso forte e despreocupado de um atleta universitário. Membro da equipe de mergulho da faculdade, Langdon ainda tinha um corpo de nadador, um metro e oitenta de boa forma, que ele mantinha cuidadosamente com 2.500 metros diários de exercício na piscina da universidade.
Seus amigos sempre o viram como uma espécie de enigma ; um homem que pertencia a séculos diferentes. Nos fins de semana, viam-no andando pelo pátio da universidade vestido de jeans e conversando sobre computação gráfica e história religiosa com os alunos; outras vezes, aparecia com seu paletó de tweed e colete paisley nas páginas de importantes revistas de arte em aberturas de exposições de museus para as quais era convidado a dar palestras."