postado em 31/07/2009 11:08
Cama de gato, novela que substitui Paraíso, na Globo, em setembro, marca a estreia de Duca Rachid e Thelma Guedes no gênero com um texto original. Com considerável experiência como colaboradoras, as duas trabalharam juntas pela primeira vez quando atualizaram a novela O profeta, de Janete Clair, há três anos. Duca Rachid se formou em jornalismo e trabalhou em redação, assessoria de imprensa e produção de vídeos institucionais. Mas sempre quis escrever ficção para tevê. Thelma Guedes estudou letras e fez mestrado em literatura brasileira. Mas sonhava ser escritora. Em 1986, Duca foi para Portugal e conheceu um roteirista brasileiro, Jayme Camargo, que estava montando uma produtora e precisava de alguém que criasse projetos de ficção para tevê. Foi o começo de tudo. Colaborou em novelas como A banqueira do povo, na RTP, Tocaia grande, na Manchete, e Os ossos do barão, no SBT. Thelma tinha lançado seu primeiro livro de contos quando conseguiu uma vaga na Oficina de Autores da Globo. A partir daí, entre outros trabalhos, colaborou com Walcyr Carrasco em Esperança, Chocolate com pimenta e Alma gêmea, todas na Globo. Em 2006, Walcyr indicou Duca e Thelma para adaptarem O profeta, sob supervisão dele. Deu tão certo que logo a dupla emplacou um texto original no horário das seis da emissora. Cama de gato vai pôr à prova a criatividade dessas duas, que antes de serem autoras, são noveleiras assumidas.
Como vocês se encontraram profissionalmente?
Duca: Quem nos juntou foi o Walcyr Carrasco, com quem havíamos trabalhado como colaboradoras em época distintas. Antes disso, só nos víamos nos encontros de autores da Globo e em festas na casa do Walcyr. Quando o diretor Roberto Talma propôs que ele supervisionasse algum novo autor na adaptação da novela O profeta, de Ivani Ribeiro, o Walcyr sugeriu a mim e a Thelma. Escrevemos a sinopse e os primeiros capítulos sob a supervisão dele. Depois seguimos em frente, sozinhas.
Sempre foram noveleiras? Para escrever novelas, é preciso ser noveleiro?
Duca: Ah, sempre fui noveleira. Morei durante muito tempo na periferia de São Paulo. Não tinha acesso a cinema, nem a teatro. Minha janela para o mundo eram os livros e a tevê. Lembro de assistir Gabriela escondida da minha mãe (que considerava a novela muito "forte") e dizer: "É isso que quero fazer". Anos mais tarde, tive o privilégio de trabalhar com o Walter George Durst, autor de Gabriela. Tem que gostar de novela sim, para escrever.
Thelma: Sempre fui noveleira. Desde a infância e adolescência, as minhas referências culturais foram uma mistureba: livros, teatro (pelas peças que eu lia), cinema, telenovela, fotonovela, revista em quadrinhos... Sempre fui uma consumidora ávida de histórias, vindas de onde viessem. Janete Clair e Clarice Lispector, Dias Gomes e Philip K. Dick, Gilberto Braga e Machado de Assis... Conheci e me apaixonei por eles ao mesmo tempo. Quanto à segunda pergunta: acho importantíssimo conhecer muito bem o universo folhetinesco para compreender as regras básicas da telenovela e ser um autor desse gênero. Isso acho que só vendo muita novela.
Qual foi o ponto de partida para a sinopse de Cama de gato0? O que as inspirou?
Thelma: A história partiu de um sentimento que temos partilhado em nossos papos de amigas. De que o individualismo do mundo atual está levando as pessoas a perderem de vista alguns valores fundamentais do ser humano. Pensamos inicialmente no personagem de um homem que perdeu sua capacidade de amar e que precisaria reaprender a enxergar o mundo e as outras pessoas.
Duca: Há muita gente boa refletindo sobre essa questão ultimamente. Não sei como a gente pode seguir adiante sem resgatar alguns valores imprescindíveis como, por exemplo, a solidariedade. O livro do rabino Nilton Bonder, O sagrado, entre outros, foi bastante inspirador pra gente. Além da trajetória do Buda, que vivia num palácio dourado e quando saiu de lá, conheceu a dor, a doença, a velhice, a morte. Nosso protagonista, Gustavo, é alguém que já viveu no "mundo real". Já foi um homem bom, solidário. Mas depois se encastelou na sede de sua empresa de perfumes, tornou-se escravo do dinheiro e esqueceu esses valores. É por obra de uma lição de seu melhor amigo, Alcino, e de uma armação de sua mulher, a vilã Verônica, que ele vai voltar ao "mundo real", resgatar esses valores humanos e reapreender a viver.
Thelma: Também foi muito inspirador o trabalho do psicólogo social Fernando Braga da Costa, que trabalhou oito anos como gari, varrendo as ruas da Universidade de São Paulo para sua tese de mestrado. Ele constatou que, ao olhar da maioria, os trabalhadores braçais são "seres invisíveis". Ou seja, a percepção humana fica totalmente prejudicada e condicionada à divisão social do trabalho, onde enxerga-se somente a função e não a pessoa. A Rose, nossa heroína, que é uma faxineira, é uma dessas "mulheres invisíveis".
No que suas experiências e pontos de vista particulares se complementam?
Duca: A gente tem visões de mundo bastante parecidas. Temos muitas afinidades existenciais, ideológicas, artísticas... Na verdade, a gente tem experiências de vida muito parecidas. Somos duas suburbanas (risos).
Thelma: Quando o Walcyr nos juntou para escrevermos O profeta, confesso que morri de medo. Se não tivéssemos uma sintonia tão grande, seria impossível dividir um ato tão sagrado, que é a criação. A Duca e eu não só pensamos parecido, como temos histórias de vidas próximas. Até os nossos maridos se deram bem (risos).
E no que elas divergem? Há algum ponto em que existe confronto entre vocês no decorrer do trabalho?
Duca: Francamente, não consigo me lembrar de nenhum momento em que a gente teve alguma divergência séria.
Thelma: Acho que a maior diferença entre a gente é o jeito de trabalhar. A Duca é bem mais desprendida do que eu. Talvez por conta das nossas formações diferentes. Ela vem do jornalismo, mais colaborativo e ágil. Venho da literatura, que é mais solitária e lenta. Às vezes, demoro muito a soltar um capítulo, fico procurando pelo em ovo, lambendo a cria. E é a Duca que me manda largar o osso e entregar logo, porque a produção precisa do capítulo.
Como é a divisão de trabalho? Por núcleos, por capítulos...
Duca: A gente senta para pensar a novela e escaletar os capítulos juntas. Depois distribuímos as cenas para nossos colaboradores e, por fim, fazemos o texto final, em separado, mas de comum acordo.
E como tem sido a relação com os colaboradores, sendo duas autoras?
Duca: Trabalho com o Júlio Fischer, o Alessandro Marson e a Thereza Falcão desde o Sítio do picapau amarelo. A Thelma conheceu o Júlio e o Alessandro na Oficina de Roteiristas da Globo, quando ela entrou na emissora. Ou seja, nós duas já temos uma relação de muitos anos com eles. A Thereza chegou um pouco depois, mas se encaixou bem nessa nossa "irmandade", que se completa agora com a chegada do João Falcão.
Corridas por grandes fortunas são comuns em novelas. Vocês vão tratar de valores intangíveis. Acham que as novelas estão carentes de temas como esse? Qual o maior apelo de Cama de gato?
Duca: Acredito numa boa história. E acho que temos uma nas mãos. Uma história de amor (um sentimento intangível também), contada com agilidade e emoção. Além de uma trama central forte, temos também histórias paralelas muito divertidas.
Thelma: Toda boa novela deve falar de valores humanos e também de corridas por grandes fortunas... A nossa tem as duas coisas. Acho que é desse embate que nasce um folhetim emocionante.
Qual a sensação de estrear como autor? É mais de felicidade ou de apreensão?
Duca: Na verdade, nossa estreia como autoras foi em 2006, com O profeta. Fazer novela, seja ela um remake ou um argumento original, é sempre difícil e desafiador. Exige inspiração, trabalho e dedicação. Estivemos tão empenhadas na adaptação de O profeta quanto estamos agora nesta novela, que tem um argumento original. No primeiro mês de O profeta, foi identificado que o impedimento do amor de Marcos e Sônia, que na história original era uma questão ética (o protagonista não deveria "vender" seus poderes), não era importante para os telespectadores. Então tivemos que criar um impedimento mais concreto: um vilão forte, o Clóvis, que afastava concretamente a Sônia de Marcos e ameaçava sua integridade física e psicológica. Assim, nossa versão ficou bem diferente do original. Podemos dizer que foi mesmo outra novela. O trabalho de construção dessa outra história foi tão grande e complexo, como está sendo escrever agora esse projeto. Escrever novela pode ser uma coisa muito feliz. Mas o frio na barriga está sempre lá.
Thelma: Acho que agora nos sentimos até mais à vontade, porque estamos criando a nossa própria história. É mais difícil mexer na história de outro autor. Principalmente quando se trata de uma grande autora, como Ivani Ribeiro. Mas sabemos que a nossa responsabilidade é muito grande agora, com um argumento original.
Vocês deram palpites na escolha do elenco? Com esse esquema de "reserva" de atores, deixaram de contar com algum ator que gostariam de ter?
Thelma: Nós duas pensamos junto com o João Emanuel (Carneiro, supervisor do texto) e o Ricardo Waddington (diretor) e não tivemos nenhum problema de reserva. Graças a Deus. Praticamente todos os atores que convidamos aceitaram participar. Estamos felicíssimas com nosso elenco. E nosso último grande ganho foi o Marcos Palmeira.
Duca: É, a gente tinha pensado no Marcos Palmeira, mas achávamos que ele recusaria, porque tinha acabado de sair de uma novela. Foi uma surpresa muito boa ele aceitar fazer o Gustavo. Que outro ator teria o carisma suficiente para fazer um protagonista que começa a trama antipático, mas que no fundo é um cara bom? Só ele.
Acreditam que a parceria Duca Rachid e Thelma Guedes pode virar algo como Lennon & McCartney ou Roberto & Erasmo das novelas?
Duca: Talvez Lennon & McCartney e Roberto & Erasmo sejam geniais demais para nós. Mas se tivesse que escolher, gostaria que a gente fosse o Roberto e o Erasmo, uma dupla longeva. Sou muito gregária, adoro trabalhar junto com outras pessoas. E é ótimo poder dividir com alguém um trabalho tão volumoso e de tanta responsabilidade.
Thelma: Neste trabalho em dupla, fiz uma grande descoberta: que é possível se divertir e se emocionar muito criando ao lado de outra pessoa, muito mais do que no trabalho de autor solitário. A gente morre de rir e chora junto escrevendo as cenas muitas vezes. É bom demais! Hoje estou amando formar a dupla Duca & Thelma. Mas o futuro a Deus pertence.
Duca: Pois é, ela já está pensando em se separar de mim... Sniff!
Thelma: Tô nada, mina... É só pra fazer suspense e deixar um gancho pro próximo capítulo (risos)