postado em 02/08/2009 15:00
Roberto Farias estava com 18 anos quando encontrou no cinema uma profissão. De lá para cá, não abandonou o ofício. "Não faço filmes como oportunista. Eu vivo disso", afirma o cineasta, hoje com 77 anos. Ainda assim, o último longa-metragem dirigido por esse fluminense de Nova Friburgo é de 1986, Os Trapalhões no Auto da Compadecida. Nas duas décadas seguintes, encontrou refúgio na televisão, onde adaptou Rubem Fonseca (no especial A coleira do cão, da série Brava gente), narrou mistérios à brasileira (As noivas de Copacabana) e exercitou o humor em programas como Sob nova direção.A versatilidade não dá margem a dúvidas: Roberto é um profissional que faz questão de acompanhar o ritmo do público. Dirige para ser visto. É assim desde os anos 1950, quando assinava comédias da Atlântida. Nos anos 1960, embarcou na fantasia dos filmes de Roberto Carlos e teceu crônicas de costumes. Mas acabou fisgado pelas emoções fortes dos thrillers. No clássico Assalto ao trem pagador, de 1962, praticou o esporte preferido: mexer com os nervos do público. Em dramas urbanos como Pra frente, Brasil (1982), colocou a realidade brasileira em chapa quente. Daí o convite para que Roberto exibisse dois filmes (Assalto ao trem pagador e Cidade ameaçada) na mostra Baseado em Caso Real, em cartaz até este domingo no Centro Cultural Banco do Brasil.
Pronto para retornar às telas, o cineasta conversa com o Correio sobre cinema, televisão e política cultural. Ex-diretor da Embrafilme (entre 1974 e 1979), não esconde as críticas em relação à Ancine. Defende o retorno do adicional de renda, auxílio governamental que complementava a bilheteria dos filmes. "Hoje, o incentivo é dado antes da produção. São feitos muitos filmes que não se preocupam com o público", argumenta.
COLABOROU RICARDO DAEHN
Na comédia Um candango na Belacap (1961), você fez referência à construção de Brasília. A capital é uma boa inspiração para o cinema?
Nunca filmei Brasília. Seria interessante viver essa experiência. Aqui tem de tudo. Tem comédia, tem bandido, dá para fazer filme policial, dá para fazer filme sério. Existe uma história muito interessante de um sujeito que era assessor, não sei se do Senado ou da Câmara, e matou a mulher. Matou, se escondeu, e foi um caso de muita repercussão. Aquilo me parecia um filmaço. Isso já deve ter mais de 15 anos.
Retratar a realidade é a vocação do cinema brasileiro?
Concordo com o (crítico) José Carlos Avellar quando ele fala que a tendência do cinema brasileiro sempre foi se aproximar do real, enquanto a televisão passou a fazer uma ficção mais livre. Isso é interessante. Parece até que existe um senso comum que acaba levando o cineasta a retratar o real. Raramente você vê filmes como Se eu fosse você ou A mulher invisível, em que a ficção se deixa levar completamente.
Como explicar o sucesso de bilheteria das comédias em 2009?
O cinema brasileiro sempre fez comédias. Isso vem do tempo da Atlântida, até de antes. Com a saturação da pornochanchada, o cinema brasileiro passou a se levar muito a sério. Mas ainda bem que voltaram a fazer. A comédia é uma diversão agradável e ela pode ser um gênero importante. O público gosta. E ela não precisa ser irresponsável. Ela tanto mais diverte quanto mais se aproxima dos nossos problemas, das nossas angústias e do cotidiano.
Existe uma herança das chanchadas nesta nova safra de comédias?
Acho que não. O gosto pelo gênero vem do espírito do brasileiro, que é bem-humorado e faz piada de tudo. Num instante, o brasileiro avacalha coisas sérias. Outro dia mesmo, já estava ouvindo piadas sobre a morte do Michael Jackson. É tudo muito rápido. No tempo da chanchada, o Brasil inteiro ficava esperando o filme de carnaval. Não tinha televisão. Essas comédias traziam as gírias novas, as piadas. Era um banho de humor anual. Hoje, noto a força do humor de certas regiões, uma graça local que vai conquistando o Brasil. Como nos filmes de Jorge Furtado.
O thriller é seu gênero favorito?
De certa maneira, sim. Gosto do thriller que permite uma conquista da atenção e da tensão do espectador. Assalto ao trem pagador prende a atenção do espectador nos primeiros 15 segundos. Gosto de fazer filmes de uma forma que prenda a atenção do público para que ele possa assimilar bem aquilo que eu quero mostrar a ele. Quero que ele fique na expectativa para saber o que vai acontecer depois.
O retorno do gênero policial ao cinema e à tevê o atrai?
Naturalmente, a evolução da nossa atividade vai propondo novas formas, novas estéticas. Eu estava vendo Cidade ameaçada, que fiz em 1960. Ele tem uma hora e 40 minutos de duração. Se eu tivesse remontado hoje, ele ficaria com mais ou menos 40 minutos. A agilidade da narrativa hoje é completamente diferente. O cinema era mais lento, mais contemplativo. As grandes cidades, o automóvel, o avião, tudo isso impôs no cotidiano das pessoas uma agitação tão grande que se refletiu na narrativa cinematográfica. Se você não for rápido, hoje em dia você sofre. O ser humano de hoje é totalmente diferente do ser humano de 50, 60 anos atrás.
Nesse contexto, você se sente instigado a voltar ao cinema?
O meu cinema evolui de filme a filme. Não só o cinema, mas a televisão que eu faço também é assim. Há pouco tempo fiz A coleira do cão (adaptação de conto de Rubem Fonseca) para a tevê, e era com esse ritmo acelerado. É uma imposição. Se você evolui junto com o público, com o cotidiano, você obrigatoriamente tem que se permitir essa evolução como cineasta.
Como você lida com a crítica de que o cinema brasileiro está parecido com a tevê?
Não acredito nisso. Acho até que é uma má vontade crítica. Os profissionais de televisão têm mais intimidade com a câmera e com os atores que os cineastas. O cineasta faz um filme a cada três, quatro, 10 anos. No cotidiano, ele não exercita seus instrumentos narrativos. As pessoas da tevê são mais eficientes ao contar uma história. Falaram muito em estética publicitária quando fizeram o Cidade de Deus. O (Fernando) Meirelles, por exemplo, que veio da publicidade, é um tremendo diretor. Você vê Som e fúria e aquilo é cinema puro.
Com o apelo da tevê, ainda existe graça no ato de fazer cinema?
Não há dúvidas. O cinema é a joia da produção. Mas televisão potencializa o cinema de uma forma extraordinária. Na Globo, um filme que fez 20 mil espectadores no cinema vai fazer 5 milhões.
O senhor dirigiu a Embrafilme. Como avalia a performance
da Ancine?
É um capítulo à parte, não é? A Ancine, mesmo com muita boa vontade de seus diretores, caiu numa burocracia excessiva. Nunca um órgão de cinema no Brasil teve tantos funcionários. E o resultado deixa a desejar. Por outro lado, a Ancine está ocupando o vácuo deixado pelo Conselho Superior de Cinema, que foi nomeado, se reuniu duas vezes e depois nada. Por lei, é ele quem faz a política do cinema. Mas ele simplesmente não se reúne. E a Ancine vai fazendo. O cinema precisa tomar um rumo menos autoritário, menos concentrado em poucas cabeças.
Como você vê a política do governo para o cinema?
O (produtor) Luiz Carlos Barreto costuma dizer que o governo Lula tem um êxito enorme em todo lado, menos no cinema. Este ano, por acaso, tem dois ou três filmes que saíram do marasmo habitual dos últimos oito anos. O cinema só perdeu público. Em 2003, o cinema brasileiro ocupou 20% do mercado. Este ano, talvez ocupe 10%. Isso não é propriamente um sucesso de bilheteria, a política do cinema.
Na retomada, haveria lugar para um novo filme de Roberto Carlos?
Claro. O Roberto é um artista muito rico. Mas não pode ser Roberto Carlos em ritmo de aventura. Tem que ser em ritmo de amor, de tranquilidade, de paz, de fraternidade. Temos até conversado sobre isso. Tínhamos contrato para fazer cinco filmes. Fizemos três. Às vezes nos encontramos e dizemos: ;Você está me devendo dois;. Mas não sou mais criança, tenho que priorizar alguns projetos.
E quais são os planos para o cinema?
Tenho dois projetos mais imediatos. Um deles, que talvez eu faça logo, é um filme simples sobre um menino que quer ser piloto e é orientado por um piloto fantasma. E o outro é aquele que desperta muita curiosidade, que tem me tirado o sono: um filme sobre a vida e a morte de João Goulart. Tenho feito anotações. Não tenho roteiro, mas estou pensando muito na ideia. Consegui dinheiro do BNDES para fazer um filme sobre a formação de milícias no Rio, Poder paralelo. Mas não consegui captar mais nada. Estou pensando seriamente em devolver o dinheiro.
O grande momento
Assalto ao trem pagador, lançado em 1962, reconstitui o plano ousado do bando de Tião Medonho, que atacou o trem pagador da Central do Brasil, entre Japeri e Paes Leme, explodindo os trilhos com dinamite. Levaram 27 milhões de cruzeiros e mataram um homem. O longa, auge do cineasta, foi exibido na mostra Baseado em Caso Real.
Estilo em maturação
Inspirado na história do bandido Promessinha, Cidade ameaçada retrata a marginalidade dos centros urbanos com crueza. Será exibido hoje, às 15h50, na mostra Baseado em Caso Real, no CCBB.
BASEADO EM CASO REAL
Mostra de cinema no Centro Cultural Banco do Brasil. Último dia, com exibição dos filmes Cidade ameaçada, de Roberto Farias, às 15h30, Mineirinho vivo ou morto, de Aurélio Teixeira, às 18h30, e O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla, às 20h30. Ingressos a R$ 4 e R$ 2 (meia). Não recomendado para menores de 14 anos.