Diversão e Arte

Artistas como Clarice Gonçalves montam seu espaço para criação de acordo com a personalidade e método de trabalho

Nahima Maciel
postado em 19/08/2009 09:04
Ateliê é lugar sagrado. Tem ordem própria, visitação limitada, luz específica e uma aura que ajuda a encarar o processo criativo como algo bastante etéreo e transcendental. Misticismo puro para alguns artistas, realidade para outros. Fato inquestionável, no entanto, é a capacidade de o ateliê interferir na configuração das obras. É consenso entre os artistas que a decisão de montar um espaço destinado exclusivamente ao trabalho pode refrescar a produção. Há quem só tenha conseguido pintar telas de grandes dimensões quando se instalou em salas amplas. Ou quem tenha descoberto novas cores ao pintar exclusivamente com luz natural. E há ainda os que se depararam com novas linguagens depois de alugar um galpão em lugar afastado da cidade. Ateliês também dizem muito sobre as personalidades e metodologias dos artistas. Na maioria das vezes têm cada centímetro quadrado ocupado por objetos e uma organização visível, mas incompreensível. Por isso os artistas costumam rejeitar a palavra "faxina". Passar um pano e tirar o pó é o máximo que admitem. E visitas costumam ser admitidas desde que não alterem a ordem particular das miudezas e objetos aparentemente inúteis. De tão fascinantes, ateliês já renderam bons livros de ensaios fotográficos e textos analíticos. O francês Jean Genet escreveu sobre o tema em O ateliê de Giacometti e Pablo Picasso deu ao fotógrafo David Douglas Duncan Viva Picasso, resultado de décadas de observação do artista em seu espaço de criação. No Brasil, o fotógrafo Carlos Leal dedicou meses a registrar os locais de trabalho dos mais importantes artistas cariocas e publicou Ateliês do Rio de Janeiro. O Correio visitou alguns desses espaços de artistas da cidade que preferem trabalhar em ambiente reservado. Espaço e tranquilidade André Santangelo adora cozinhar e não são raras as vezes em que troca os dois cômodos do ateliê %u2014 uma casa no Setor de Mansões do Lago Norte %u2014 pela mesa da cozinha. Enquanto comanda as panelas, trata as imagens de alguma série com a qual planeja trabalhar. Santangelo precisa de espaço, por isso topou alugar dois quartos na casa de um amigo e transformá-los em ateliê. A área é mais conveniente que a sala na Asa Norte, onde mantém escritório. "Aqui tenho espaço para esvaziar um quarto e montar uma instalação. A melhor ideia nasce quando você tem o material à mão. E é preciso espaço para que isso aconteça." Restos de máquinas A máquina xerox encostada num canto e quase submersa em um monte de sucata é a prova da importância do ateliê na vida de Miguel Ferreira. As criações do artista de 33 anos só podem tomar forma se ele acumular os velhos restos de máquinas guardados no ateliê. Não há uma parede livre no cômodo alugado no subsolo da comercial da 209 Norte. Ferreira mantém o ateliê no local há cinco anos e mora numa quitenete logo acima. "Sempre quis ter ateliê e morar aqui. Nunca mais saio. Gosto do movimento da quadra, é importante para criar. Preciso dessa bagunça", conta. Novas dimensões O ateliê mudou a vida de Elyeser Szturm. Quando trocou uma lojinha na Asa Sul pela privacidade de um galpão de 100 m² no Park Way, o artista goiano e professor da Universidade de Brasília (UnB) pôde dar ao trabalho novas dimensões. As três mesas dispostas no ateliê permitem desenhos em formatos grandes e Szturm voltou à prática com disciplina quase obsessiva. As túnicas de silicone confeccionadas como peles sujeitas à ação do tempo aparecem em todos os cantos do terreno cercado pelo cerrado. O contato com a natureza tem papel fundamental na criação de Szturm. "O ateliê mudou meu trabalho. Comecei a fazer coisas que não podia fazer, como testes de cor e uma série de procedimentos que me permitem desenvolver o silicone." Cada centímetro do terreno alugado de um amigo abriga uma fase do trabalho do artista e há até um espaço destinado a uma escultura fixa na terra, ainda em andamento. Luz natural Clarice Gonçalves, 23 anos, conseguiu conquistar uma área dentro da casa em que mora com a mãe e a irmã em Taguatinga. Depois de fazer todos entenderem que ateliê não é depósito, ela fincou o cavalete no meio da área de serviço e transformou o ambiente em espaço aconchegante, com muitas plantas e objetos colecionados ao longo do tempo. "É indispensável ter um espaço e em casa é muito mais íntimo. E se você pinta, tem que ser um espaço aberto, ventilado e com luz natural." Clarice gosta de pintar de manhã. "Por conta do meu trabalho intimista", justifica. Sempre tem à mão o fone de ouvido e só trabalha ouvindo música, maneira eficaz de evitar o barulho da estrada que passa nos fundos da casa. Lugar reservado Uma vez, a esposa do artista Fernando Madeira sugeriu que dividissem uma sala. Ele não hesitou: "Não dá, são trabalhos diferentes". A sala de 40 m² numa quadra comercial raramente recebe visitas. É lugar reservado, onde Madeira se refugia todas as tardes para trabalhar em suas colagens, ilustrações e projetos de arquitetura. Num canto ficam espalhados os papéis catados na rua à espera da triagem antes de integrar as pinturas. O artista também colocou uma cama para a sesta depois do almoço. "O tipo de trabalho que faço é meio sujo, então preciso de espaço. O ateliê foi muito escolhido porque é um lugar tranquilo, isolado, sem telefone", diz. Tudo acontecendo Para Tiago Botelho, o ateliê representa dezenas de coisas acontecendo ao mesmo tempo. O mundo fica trancado do lado de fora da quitenete no terceiro andar de um prédio comercial à beira da estrada para Sobradinho. "É um espaço dinâmico, em constante mutação", avisa o artista de 33 anos. O ateliê faz parte da rotina. Botelho frequenta o espaço três vezes por semana e não gosta muito de estranhos circulando por lá. "Já morei no ateliê, mas existem esferas da vida que não podem acontecer lá dentro%u201D, conta. "É meu lugar para me descobrir. A busca da linguagem acontece aqui dentro."

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