Uma conversa com Guilherme Vaz é sempre diálogo provocador, polêmico e deflagador de novas maneiras de ver a arte e o mundo. Ele é um dos artistas que encarna com mais intensidade o espírito de invenção que animou o período inicial da construção de Brasília. No Instituto Central de Artes da UnB, teve aulas especiais com o maestro Rogério Duprat, o antropólogo Darcy Ribeiro, o crítico Paulo Emílio Salles Gomes, o artista plástico Athos Bulcão, os cineastas Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha. Guilherme se destacou como um dos mais premiados autores de trilhas sonoras para cinema (Fome de amor, de Nelson Pereira dos Santos, O anjo nasceu e Filme de amor, ambos de Júlio Bressane, entre outros). Nesta entrevista, ele sustenta que o tropicalismo nasceu com as experimentações de Rogério Duprat na UnB e fala sobre a necessidade de se criar "arquiteturas do pensamento" para preencher os vazios de Brasília.
Há dois anos, quando o maestro Rogério Duprat morreu, você afirmou, polemicamente, que o tropicalismo nasceu em Brasília, na década de 1960, com o grupo de músicos paulistas, que eram professores da UnB. Que evidências você citaria para sustentar a sua versão?
Esta evidência de que o tropicalismo nasceu em Brasília só é polêmica pela falta de estudo e vivência sobre a história brasileira recente. Eu sou testemunha de que foi a existência da Brasília original como projeto de vanguarda que fez Rogério Duprat acreditar na possibilidade de vida acústica inteligente no país. Duprat pode ter fundado o tropicalismo, mas foi Brasília quem fundou Duprat. O que se praticou de música experimental na UnB nunca mais vi em nenhuma outra, nem fora do país, não há similar conhecido no mundo naquela época. O ICA (Instituto Central de Artes) estava na frente. Duprat foi inventado ou se reinventou em Brasília. Foi de Brasília que ele percebeu e vivenciou a fala-canto " no planalto central do país ", "sobre a cabeça os aviões", depois colocada em música na Tropicália, por Caetano Veloso.
O maestro Rogério Duprat reconhecia a relevância de Brasília em sua formação?
Diversas vezes em depoimentos para jornais, livros [Vida de músico] e teses sobre o seu trabalho ele cita a sua experiência de Brasília como decisiva. Cita meu nome e, de fato, sou desta raiz. Duprat é essencialmente um artista de Brasília. Um artista seminal de Brasília. A Brasília original foi o primeiro ponto que possibilitou o encontro da experimentação com a tradição. Isso é a essência da Tropicália. Uma das fontes conceituais do tropicalismo pode ser encontrada na trilha que fiz para o filme Fome de amor, do Nelson Pereira. É só "ouvir" o filme, pois , na trilha, é possível encontrar elementos experimentais, música concreta, ao lado de uma folia do espírito santo, que eu gravei em Pirenópolis.
Por você acha que a ênfase nos monumentos prejudica o desenvolvimento de Brasília? Historicamente, por que isso ocorreu? É uma decorrência dos regimes exceção instalado a partir de 1964?
Acho que há um culto do cartão-postal, uma "cartopostalização" da arquitetura de Brasília. Grande parte do vazio da cabeça dos brasilienses se explica por esse vácuo dos valores. Contudo, espaços vazios não comandam o destino de uma cidade, mas sim o seu desenvolvimento intelectual, que se plasma na forma de pensar e nas práticas sociais transformadoras. Nenhuma arquitetura se justifica sem uma missão. A utopia tem muito mais a ver com Paulo Emílio Salles Gomes, Darcy Ribeiro e Rogério Duprat na UnB. A propaganda oficial nunca os cita. Mas não é culpa do Oscar Niemeyer e do Lúcio Costa, eles criaram novas formas e novos pensamentos e que foram esvaziados pelos regimes de exceção. Eles também foram vítimas desse processo histórico.
Como reverter esta situação de culto a um cartão-postal vazio?
Não é suficiente criar arquiteturas físicas, é preciso criar "arquiteturas do vento" , arquiteturas de pensamento inovadoras e originais, como UnB fez no início. Arquiteturas dos modos de pensamento humano, na arte e na ciência, na filosofia e na concepção da dimensão social e econômica. Por isso, o monumento sozinho, sem a arquitetura do pensamento, é algo que de certa forma oprime o espectador.
Mas ter nascido sob o signo das artes, pela integração com a arquitetura e pela colaboração com grandes artistas do modernismo, não distingue Brasília em um contexto internacional? Não há um sentido simbólico para o Brasil diante de si mesmo e do mundo no fato de construir uma capital modernista no sertão?
Isso é verdade. Brasília é a afirmação do país como ato de vanguarda, ato único. É a primeira galeria de arte ao ar livre, pública, imensa, que já foi construída no país, para os brasileiros e para todos que passam, mesmo os mais simples e, sobretudo estes. Eles vem dos altos sertões e, em um salto, sem preparação, se deparam com a era contemporânea, os espaços vazios e com uma arquitetura única e avançada. Para repetir a imagem genial de Euclides da Cunha talvez "vários séculos os separavam". Eu sou totalmente seguidor de Oscar Niemeyer quando ela fala que a obra de arte tem que causar espanto, causar espanto, pela sua originalidade, pela sua audácia, pela sua liberdade. Essa frase expressa a essência do sentido original de Brasília.
Qual a importância de Brasília em sua formação pessoal e cultural para que se tornasse um dos melhores e mais originais autores de trilhas sonoras para o cinema? No que Brasília te marcou?
Bom, Brasília é essencial. A compreensão da linguagens experimentais, os transacasalamentos das linguagens, esse foi o perfil que eu levei para o Rio em 68 na produção da primeira música para cinema, o filme Fome de amor do Nelson Pereira dos Santos. Era a primeira música experimental no cinema do Rio, única neste sentido. E a minha inserção no Rio foi muito dramática, porque tudo era e é, de certa forma, muito antigo, com raras exceções clássicas como o Bressane. Não se tinha nos estúdios a menor ideia de "música concreta" e isso causou um quase pânico por parte dos técnicos, que tive que ordenar, música a partir de sons da realidade não era admitida. Me lembro quando comprei uma caixa de bolas de ping-pong para jogá-las no chão e gravar o seu som pipocante sobre o solo e deixá-las cair de uma escada alta sobre os microfones.
Mas alguém o apoiou no projeto?
Os técnicos simplesmente surtaram, não falavam nada, só olhavam. E isto era comum para nós, nas aulas com o Rogerio Duprat, no ICA , não tinha novidade nenhuma, mas ali era o estarrecimento. As únicas pessoas que me apoiaram foram o Nelson Pereira dos Santos e a Leila Diniz. Eu experimentava na linguagem e ela no campo social, subvertendo valores convencionais. Então houve uma sintonia.
O público costuma ter dificuldade com a música contemporânea experimental, especialmente aquela que traz elementos atonais ou dodecafônicos, mas num filme essas composições passam bem e não provocam repulsa no grande público. Por que acha que isso acontece?
A arte, assim como a ciência, e mesmo a tecnologia, não é um agrado somente, algo que não exija um esforço, por mínimo, pessoal, de adaptação à escala evolutiva das linguagens, as tecnologias da linguagem, que acompanham as tecnologias do mundo. No cinema a música experimental é mais compreendida que no concerto puro pela presença das imagens, elas traduzem o seu sentido. A música, por ser uma arte abstrata, é exigente, e as imagens facilitam a sua compreensão em grande parte, traduzindo-a em imagens que são entendidas sem esforço. Toda aceitação depende da compreensão. O cinema traduz, é uma arte da tradução, entre todas as linguagens. O cinema como um tradutor universal não só une as linguagens, mas também o mundo, e as suas práticas, sendo a língua contemporânea por excelência.
Por que, na sua opinião, a música dita erudita não atrai mais o grande público como costumava fazer no início do século?
A música erudita nunca foi tão ouvida como hoje, especialmente pelos mais aparentemente distantes a ela, o público pop. Está muito bem adaptada ao mundo contemporâneo desde a experiência dos Beatles, em George Martin introduziu trechos inteiros na musica pop, na concepção de arranjos, românticos e clássicos, com pleno êxito de público e de função social e mesmo artística. As linguagens pop usam como nunca a música de concerto. Madonna usa nos arranjos. No Brasil, Rogerio Duprat, professor pioneiro da Unb, introduziu a música erudita e mesmo experimental no Tropicalismo, mudando a face musical daquele movimento, na vertente brasileira. A música erudita é uma coleção de experiências empíricas e filosóficas humanas tradicionais que não podem faltar, na construção social por serem verdadeiras e legítimas, e algumas transcendentes.
O que não pode faltar numa trilha composta por você para o cinema?
Não pode faltar o sentido de co-autoria suspensa da obra, o sentimento de que a música é uma peça relevante, num domínio importante da poesia cinematográfica, quase um sentimento de rendição e de co-responsabilidade, um render-se a obra, ao filme, ao movimento semântico da câmera. Uma postura quase oriental , de sendo a parte ser também o todo, ou de sendo o todo ser a parte. A música tende para o espaço e o espaço é essencial para a música na era contemporânea. Tenho composições que não têm som: são puro cinema, puro espaço, o espaço no tempo . Música sem som, puro cinema.
Música para cinema é diferente de música de concerto? Por quê?
Não, apenas tem uma natureza outra, aberta ao mundo, aglutinadora de movimentos, de signos, ela pode ter a mesma semântica e essencialidade da música de concerto, a mesma inteireza. Ser íntegra. Carregada de sentido. A visão moderna é essa. A minha afirmação é de que toda música é para cinema porque toda música produz imagens na mente do espectador. Mas nem todo cinema é para a música. O público e mesmo os compositores numa era anterior e não qualificada pensavam que havia uma diferença de qualidade , mas não é o caso . O grandes compositores já desconfiaram há muito disso, Cage compôs música para cinema e para dança. Edgar Varese ja foi introduzido no cinema.
A cultura indígena te influencia? Como?
Me influenciou muito como artista e como pessoa. Os índios são ETS reais, pressentimos que não estamos sozinhos, que há outras maneiras de olhar para o universos radicalmente diferentes. Esse encontro se deu prioritariamente entre os gavião-ykolem e os zoró-panganjej no chamado extremo oeste brasileiro. Fui ensinado que os instrumentos tradicionais valem quanto mais antigos mais valiosos e se medem esses pelo valor econômico do tempo de uso. Por exemplo: o Stradivarius ou o Guarnieri são instrumentos de grande valor, e não duvido. Entretanto, para os índios, o instrumento é uma potência, uma forma que "está no ar" e que deve ser refeita a cada novo concerto. O fagote indígena de palheta dupla, o Gwyan, dura por exemplo três dias, apenas três dias. Ele deve ser reconstruído a cada nova cerimônia. Seu valor é filosófico, conceitual e não econômico. Por outro lado, estamos acostumados a colocar as artes visuais em qualquer contexto ou museu ou galeria e qualificá-la pelo preço ao mesmo tempo divulgando e assumindo isso. Para os povos indígenas a pintura tanto corporal quanto decorativa não podem estar fora dos contextos simbólicos a que pertencem. Foi Claude Levy-Sraus que passou longo tempo no Brasil, quem disse, a partir da suas experiências entre os indigenas : "que eram as únicas sociedades capazes de passar por uma grande crise mundial e sobreviver ", uma guerra por exemplo.
O que você considera o mais singular e precioso no projeto inaugural de Brasília? Você acha que isso se perdeu para sempre ou existem rastros e tradições a serem recuperados?
O mais singular, se bem que o corpo da singularidade é grande, enorme, é a possibilidade de sair de uma cultura meramente descritiva e figurativa e encanecida como o Brasil antes de Brasília, uma nação perdida em suas próprias reflexões provincianas, para uma cultura do espaço, astronômica e transversal, onde todos os pontos se relacionam e se articulam com inteligência: o ancestral e o futurista, o local e o universal, o figurativo e o experimental, a Folia do Divino de Pirenópolis e a música concreta. Brasília é experimental, ela veio para romper com a lógica do figurativo, uma rua depois da outra, um acorde depois do outro, uma coisa depois da outra. É a presença do imprevisível na história brasileira. Não acho que as ideias de fundação se percam em nenhum projeto humano. Temos ideias vivas que datam de mais de dois mil anos; elas resistem. O projeto original de Brasília será relido em algum momento.