Yarina é uma indiazinha que aguarda o retorno do amado. Apareceu para Ana Miranda em sonho. Ela acabara de ler os textos do padre Antonio Vieira, necessários para compor trechos do premiado Boca do inferno, sobre o poeta Gregório de Matos. Impressionada, sonhou com o padre de pé numa clareira e uma índia a remendar rasgos da batina esfarrapada. A história onírica acabou anotada e colocada de lado. Ana escreveria outros cinco romances antes de retomar o sonho que gerou Yuxin ; Alma, recém-lançado pela Companhia das Letras em parceria com as Edições Sesc/SP.
O que diz a autora
Pode contar como nasceu a história de Yuxin? Essa índia existiu ou tem algum vínculo com alguma figura histórica?
A história de Yuxin é antiga. Nos anos 1980, quando eu estava escrevendo meu primeiro romance, Boca do Inferno, li os textos instrumentais do padre Antonio Vieira em que ele fala sobre sua passagem pelo Maranhão, a ida ao Ceará, a dolorosa subida com as mãos pela serra da Ibiapaba, e sua convivência com os índios, a quem ele pretendia proteger e libertar... Fiquei tão impressionada com os relatos que sonhei com Vieira. Ele estava numa clareira na mata, a batina rasgada, e aos seus pés uma índia ajoelhada remendava os rasgos da roupeta. Anotei o sonho, e pensei em escrever um romance em que Vieira seria personagem, acompanhado de uma índia. Quando terminei meu romance Dias & Dias, eu estava vivendo numa floresta, na chácara da minha irmã, Marlui Miranda, compositora e cantora que trabalha com música indígena, e senti que era o momento de escrever o meu sonho. Mas então os meus romances eram narrados na primeira pessoa por uma voz feminina, e escolhi a índia, aquela que estava ajoelhada. Ela é uma índia de um sonho, existiu apenas na imaginação, e não tem nenhum vínculo com nenhuma personagem histórica, nem com um povo indígena específico. Mas ela é uma versão feminina de dois índios que foram ouvidos pelo historiador Capistrano de Abreu: o adolescente Tuxinin e Bôrô, dois kaxinauás. A questão histórica é o período da borracha, e a migração de cearenses para o Acre, para o trabalho nos seringais.
O subtítulo do livro é Alma. Você está planejando outros romances que incluiriam outras esferas do que sugere o subtítulo?
Essa pergunta é de muita acuidade. A resposta natural seria que não tenho planos de escrever sobre outras esferas da alma, mas a verdade é que todos os livros se referem a almas, porque os livros são feitos de palavras e a alma é a palavra. Palavra é alma, veja ali na Bíblia, está escrito, no princípio era o Verbo, o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus. A palavra é espírito, o Verbo é Deus, no sentido de que a consciência é palavra. Não o conhecimento, o conhecimento pode vir por vários sentidos, mas a consciência só pode existir na palavra. É a árvore da ciência e do saber.
Como foi a pesquisa de linguagem para escrever o livro?
Bem, a índia sonhada era a narradora, mas no sonho ela não falava, e eu não sabia como era a sua voz. Precisei dar voz a um ser onírico. A voz dela seria o romance. Comecei pelos escritos de Vieira, mas ali não estava. Ouvi e li o material vasto que minha irmã recolheu em décadas de trabalho junto a povos indígenas e a estudiosos. Minha irmã carrega dentro de si a voz de índia que eu precisava, mas eu a captava apenas na musicalidade e no ritmo, não havia palavra. Vasculhei livros e mais livros de estudiosos, de índios, em busca de registros de uma fala autêntica de uma indígena, uma índia conversando, uma índia pensando, foi muito difícil formar porque a fala, o pensamento da índia não estava nos depoimentos dos índios, nem na língua portuguesa, nada dava a sensação de que era um fluxo de consciência de uma índia, nada. Minha sorte foi encontrar um vocabulário preparado por Capistrano de Abreu, com depoimentos longuíssimos de dois índios. Era perfeito para mim, pois eles falavam em sua língua e Capistrano traduzia literalmente. Os índios são ágrafos, por isso nasceu uma interlíngua, permeada pelas vozes da floresta, os sons, a música da natureza, uma interlíngua entre a palavra e a música, entre o pensamento visual da índia e sua transformação em palavra, um comportamento sensorial transformado em comportamento literário. E musical. Quando mostrei um trecho do livro ao Egberto Gismonti ele disse, Mas isto é música!
Como surgiu a parceria com Marlui? Você fez as letras ou isso ficou por conta dela? Por que decidiu que o livro deveria vir acompanhado do disco? Como as duas linguagens ; a musical e a literária ; dialogam neste caso?
Somos irmãs, nossa parceria é profunda, sempre tive a sensação de estarmos fazendo o mesmo trabalho, mesmo quando ela gravava músicas indígenas e eu escrevia sobre Augusto dos Anjos, por exemplo. Há uma afinidade intrínseca ao nosso trabalho. Mesmo quando ela morava em uma cidade, eu em outra, sempre estivemos perto. Há algo em nossa formação que nos une artisticamente. O mundo indígena é dela, ela tem muito mais do que eu a herança indígena de nosso estado, o Ceará, e a Paraíba de nossos pais e avós, são estados de forte presença indígena, historicamente. Quando Marlui voltava de uma viagem a alguma tribo, chegava com as mãos e os pés riscados de desenhos corporais, a pele do rosto avermelhada, um olhar... Uma perfeita índia. A sua casa fica na Mata Atlântica, tem lagartos imensos, veados... Tem objetos indígenas por toda a casa, e os sons ecoam, e índios ficam hospedados ali... Eles falam dela, Minha irmã. Ela é irmã deles, filha de uma família indígena. Eu estava ali, sentindo aquela presença, e as músicas aconteceram naturalmente. Eu fiz várias letras, mas a Marlui não as usou, ela compôs algo muito maior do que um disco de canções, ela foi quem escolheu as partes do livro a serem lidas e musicadas, ela tem uma visão tão natural desse mundo que recriou o livro em forma de música.
Yuxin pode representar um mundo possível para os indígenas brasileiros?
O livro não é o mundo indígena, são elementos do mundo indígena transformados em ficção, a índia na verdade sou eu, lidando com esses elementos, com o intuito de verbalizar universos interiores, anteriores a mim. Tudo em Yuxin é ficção, o livro transcende o mundo indígena, o qual mesmo um antropólogo com todo o rigor de sua ciência é incapaz de transplantar, ele recria o mundo indígena, quando o antropólogo escreve sobre suas observações ele está recriando o mundo indígena, o mundo indígena pertence apenas aos índios, apenas um índio pode carregar dentro de si o mundo indígena, mas podemos transpor essa barreira com a observação, ou a imaginação, é o trabalho de alteridade, eu sou o outro, mas nunca deixo de ser eu mesmo. Então transporto o mundo indígena para as palavras. Mas já não é mais o mundo indígena, é um livro. Um livro é feito de palavras, o mundo indígena, não.
Há várias línguas no livro, não é só uma índia que mistura o português com sua língua mãe, mas que utiliza outras sintaxes, modos de falar que poderiam ser os dos bichos, da floresta. Quais foram suas premissas e referências para criar esta "interlíngua" e o que significa, para você, a "interlíngua"?
Presumo que a Yarina não está pensando em português, eu estou "traduzindo" seu pensamento e sua fala em português, essa é a interlíngua. A língua de Yarina é composta de seu eu, e seu eu é amplo, ela não é como nós, ela é ela mesma e mais os elementos de seu mundo, ela é passarinho, ela é peixe, ela é uma nuvem, uma chuva, uma curva de rio, um Yuxin, espírito da mata. Nós não acreditamos que nos transformamos em Deus, acreditamos na comunhão de seres por meio do corpo e do sangue, simbolizados pelo pão e pelo vinho na hora da missa. A Yarina acredita que ela pode se transformar em um espírito, ser um espírito Yuxin, e ela talvez seja, no segundo diálogo com as almas ela pergunta seu verdadeiro nome, e a alma diz que é Yuxin. Uma amiga que leu o livro achou que a Yarina está morta e pensa que está viva, que ela se transformou em alma porque morreu. Mas ela pode se transformar em espírito sem morrer, nessa visão harmoniosa do ser aberto. Um aspecto interessante no trabalho de composição da linguagem foi que encontrei inúmeras anotações de onomatopéias ditas por índios e escritas por estudiosos. Minha irmã diz que as índias misturam em sua fala os sons dos animais, do trovão, do vento... As onomatopéias não são semânticas, não têm significados como as palavras, são ritmo e sons.
Pode me falar um pouco do quanto há de musicalidade nessa narrativa?
Há muita musicalidade, sou uma pessoa nascida num mundo musical, a primeira história de nossa infância é que minha irmã chorava quando nossa mãe punha na vitrola Clair de Lune de Debussy. Minha irmã não é musicista por acaso. E passei minha infância ouvindo-a cantar, ouvindo-a aprender a tocar instrumentos, a compor... Mas foi o Marco Lucchesi quem me apontou tanto a questão da interlíngua como a musicalidade que existe no livro, foi quando numa palestra eu li em voz alta o capítulo de Desmundo em que a órfã portuguesa Oribela e a índia Temericô se aproximam. Ele disse que eu estava cantando. Essa frase ficou em minha cabeça todo o tempo, como um leitmotiv de meu romance Yuxin: música.
Existe alguma relação entre Yuxin e Desmundo no que diz respeito à linguagem?
Vejo mais proximidade com a linguagem de Amrik, meu romance em que a narradora é uma árabe, em que também é criada uma interlíngua, pois ela está falando árabe-português, e como ela é bailarina o seu fluxo de pensamentos é pontuado de sons, tac tac da castanhola, haialaia do seu cantarolar... Desmundo é escrito em português seiscentista recriado, mas de português para português. A fala da narradora transita sempre na mesma língua, com pequenas escapadas pelo espanhol e pelo tupi. Mas é interessante você levantar essa questão, porque acho que Yuxin nasceu de Desmundo. Como se eu entrasse mais fundo na floresta.