Diversão e Arte

Elogiado pela direção de ator, cineasta conta como faz para lapidar as interpretações em Se nada mais der certo

postado em 30/08/2009 11:22

Há um exercício dos tempos de universidade que exemplifica o espírito de trabalho do cineasta José Eduardo Belmonte no set de filmagens. É uma prática do teatro nô. De olhos fechados, Zé, como é carinhosamente chamado pela equipe, e um companheiro do curso de cinema da UnB tinham que atravessar de uma ponta a outra do palco. Um de frente para o outro, eles não poderiam se tocar. Tinham de estabelecer um pacto de confiança. Foi exatamente assim que Eucir de Souza se sentiu quando entrou no processo de criação de Meu mundo em perigo.

; Confiei totalmente nele. Às cegas. Ele me conduziu a fazer coisas que eu achava não estar pronto. Sou ator de teatro, que domina e sabe exatamente o que ocorre em cena. No cinema, a gente está nas mãos do diretor. Zé Eduardo consegue te levar para o estado que quer, conta Eucir de Souza.

Essa relação vital entre diretor e atores está evidente, sobretudo, no último trabalho, Se nada mais der certo, que acaba de estrear no circuito comercial. O filme tem colecionado prêmios, muitos relacionados ao trabalho de interpretação do quinteto Cauã Reymond, Caroline Abras, Luiza Mariani, João Miguel e Milhem Cortaz.

; O processo do Zé esbarra no teatral. É fascinante. Há o improviso, o jogo. E o ator propõe, é criador daquela história. Você não precisa chegar a um lugar ideal. Então você transforma numa experiência única. Constrói uma memória que é sua, criada nesses encontros no set. Me lembra Peter Brook. Assim, dentro dessa memória do set, nasce o personagem, relata Luiza Mariani.

Elogiado quando o quesito é direção de ator, José Eduardo Belmonte não tem o método estabelecido por diretrizes. Cada experiência é mesmo única. Nesse sentido, a vivência é como se fosse pautada pela fugacidade do teatro. Chega-se sem o roteiro na ponta da língua e a dramaturgia cresce na cena. Ele costuma reunir-se com o elenco um mês antes. O objetivo é buscar a essência de cada personagem.

; Deixo o ator perto de fazer o personagem. Você não deve deixá-lo pronto porque ainda há o set. Surgem algumas janelas para ele abrir durante as filmagens, revela Belmonte.

Quem vai com esse espírito cresce em cena. José Belmonte dá um sentido religioso ao espaço de trabalho. Comunhão entre equipe técnica e atores de tal forma que se torne um corpo só. Ao longo dos quatro longas-metragens, só levantou a voz de tom doce e elegante duas vezes. Uma com Cauã, que chegou muito certinho e apoiado no roteiro. Mas, depois que ele ;seguiu o fluxo; (premissa do diretor), fez nascer o Léo, personagem de rosto lindo e olhos atormentados.

; Ele é genial. Deixou de ser um diretor para se tornar um amigo, conselheiro, cúmplice e parceiro sincero. Cresci muito em cena. Formulamos a mesma premissa da personagem. Ele foi lapidando no set o processo colaborativo, completa Caroline Abras, apontada como a grande revelação de Se nada mais der certo.

; Zé Eduardo é um cara inteligente. O único que não tem preparador de ator. O cara é ainda roteirista e montador. É um diretor que gosta do ator. Sabe se colocar na dificuldade do intérprete. Um apaixonado por pessoas, um diretor sensível que sabe ceder. É extremamente interessado pelo teatro. Assiste a tudo. Às vezes, a gente está discutindo elenco e ele fala que já conhece os caras porque viu no palco, observa Milhem Cortaz.

É sentado na plateia do teatro que, muitas vezes, Belmonte escala seus atores. Foi assim com Adriana Lodi, que viu em Os demônios, de Antonio Abujamra e Hugo Rodas. Olhou para a atriz e imaginou que faria algo interessante juntos. Ela está em Se nada mais der certo. É a babá Leda, que tem arrancado elogios de espectadores como Fernando Meirelles.

; O mais interessante foi a possibilidade de colaborar. O ator não vem com um pacote fechado. Foi muito importante ele pedir para que eu passasse o dia na ala infantil do Hospital do Câncer de São Paulo. Depois, no set, algumas cenas (como a despedida de Leda) foram feitas no calor do improviso coletivo, destaca Adriana Lodi.

O cineasta confessa, no entanto, que foi muito criticado pela direção de ator no primeiro trabalho. Correu atrás e recorreu às teorias teatrais de Antonin Artaud (muito forte em A concepção), Stanislavski e Grotowski. Desenvolveu e experimentou técnica e intuição filme a filme. Murilo Grossi, presente em quase todos os filmes de Belmonte (a exceção é Meu mundo em perigo), acompanhou essa evolução. Ele protagonizou o curta de graduação, Três, e viu a busca incessante de encontrar um caminho.

; Nesse período, a gente dialogava muito sobre teatro. Era o meu primeiro filme. Depois, a ideia era ir para o set com o roteiro sugerido. Em Subterrâneos, foi assim. Inclusive há cena de improvisos. Depois, tudo foi ficando mais orgânico. O set cada vez mais ritualístico. Lembra aquela imagem do voo das andorinhas. Se uma vira, todas acompanham, compara Murilo.

Confira trailer do filme

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