Paulo Tovar viu o voo da juriti pela última vez na noite de segunda-feira. Aos 54 anos, tirou a tranca da janela e foi junto com a ave. O poeta e compositor morreu às 23h05, após dois anos de luta contra um câncer agressivo no cérebro. Quando começou o tratamento com quimioterapia, Tovar decidiu voltar para Catalão (GO), a cidade natal. E foi a 270km de Brasília que o compositor morreu e foi enterrado.
Tovar é nome que fez cantar e recitar toda uma geração de brasilienses. Ele chegou a Brasília em 1972 para morar na 312 Norte. O cerrado e a terra vermelha não impressionaram o então adolescente. A vegetação não era exatamente uma novidade para quem vinha do interior de Goiás. Mas o concreto sim. Isso era estranho. E logo Tovar se juntou aos adolescentes igualmente espantados. No Elefante Branco conheceu alguns dos nomes que viriam a formar a primeira geração de artistas da cidade. E nas superquadras encontrou o caldo que alimentava a nascente identidade brasiliense.
[SAIBAMAIS]O Concerto Cabeças era uma das referências. Gente como Renato Mattos, Nicolas Behr, Luis Turiba, Chacal, Vicente Sá e Sérgio Duboc faziam música e escreviam poesia destemidamente. Sem espaço para publicar, criavam editoras alternativas com mimeógrafos e edições grampeadas. Tovar criou primeiro a Sem mim, com José Luiz Soter. Com esse selo, lançou seus dois primeiros livros ; A feira e Tiro ao alvo ; e mais dezenas de escritos de colegas. ;A gente queria estimular a criação literária no DF, fizemos mais de 50 títulos e publicamos Chacal, Turiba, Wellington Diniz, João Baiano. O Tovar se envolveu tanto que chegou a fazer algumas edições. Ele editou muitos livros da rapaziada daqui;, lembra Soter. Mais tarde, já nos anos 1980, ele criaria a Numas de ler, outra editora alternativa para dar voz à poesia local.
[SAIBAMAIS]No entanto, foi a música a arte que adentrou a vida de Tovar em pimeiro lugar. Adolescente, atentou para a arte de compor após ganhar um violão. Em Brasília, chegou a começar o curso de música na Universidade de Brasília (UnB), mas foi jubilado no início dos anos 1970. O abandono da educação formal não derrubou o talento de Tovar, que tinha base sólida e foi aluno da flautista Odette Ernest Dias e da Escola de Música de Brasília (EMB). A combinação entre música e poesia o levou ao grupo Liga Tripa, do qual foi um dos fundadores e para o qual compôs O voo da juriti, seu maior sucesso. ;É uma música unânime, a gente canta em todo lugar e ela agrada e atinge o coração. Tem uma certa melancolia, uma lembrança. O Paulo Tovar foi muito feliz nisso;, reconhece a cantora Célia Porto, que gravou a música no disco Palhaço bonito.
O voo da juriti foi composta há três décadas. Mas foi com o disco H2Olhos, lançado em 2003, que Paulo Tovar encerrou a carreira. Para conseguir gravar o disco, o artista vendeu óculos performáticos e convenceu os amigos a comprarem exemplares adiantados. Desde então, chegou a trabalhar em outro álbum, mas não teve tempo de finalizar o projeto. ;Ele tinha coisas que não fechou. Fez as gravações, mas a doença avançou e não conseguiu finalizar. O carro-chefe é uma música maravilhosa chamada Bagdá, que fala sobre a situação no Iraque;, conta Rosana Hummel, irmã do artista.
; Leia depoimentos de poetas e músicos da cidade sobre Paulo Tovar e a letra da música Marco zero
"O voo da Juriti virou um clássico. Era o hino da rapaziada e um dos sucessos do Liga Tripa. Era nosso hino nos acampamentos, mas não virou sucesso nacional. O Tovar tinha essa coisa regional forte da natureza, uma coisa nativa, da região."
Nicolas Behr, poeta
"Meu amigo de infância, meu compadre e companheiro de poesia. Ele faz parte da primeira geração nativista da cultura brasiliense. É uma referência na questão da resistência cultural. Como Brasília sempre foi tratada como inóspita e sem cultura, essa primeira geração produziu e defendeu uma tradição cultural de Brasília. A característica era justamente a falta de referência em relação ao restante, era não ter característica. O Tovar não tinha preconceito , participava de todas as vertentes culturais da produção da cidade. Ele era tipo a pororoca, era o encontro dos valores interioranos de estruturas mais conservadoras com Brasília como se fosse uma espaçonave que posou no Planalto Central, no limiar entre o passado e o futuro."
José Luiz Soter, poeta
"Ele é o cara que fura o bloqueio das grandes editoras. No fim dos anos 1970 e início dos 1980 era impossível chegar a uma editora. Vejo o Tovar como formador de identidade porque a gente não tinha nada, só a maquete. A editora era com mimeógrafo e fazia pequenas tiragens. Uma das marcas dele era a generosidade, sempre foi um artista generoso. Hoje todo mundo fala em sustentabilidade. Ele já tinha um olhar para o humano e o ecológico antes de se falar nisso."
Paulo Kauim, poeta
"Era um compositor querido, antenado, captava tudo. Fico muito sentida. É um momento triste da música de Brasília. Gostava dele porque era antenado com as coisas atuais e tratava a música como poesia. Ele retratava muito bem o cotidiano, as coisas que aconteciam à sua volta."
Célia Porto, cantora
"Tovar respirava poesia, tudo para ele era poesia. A gente trabalhava muito rápido, fazia música e duas horas depois tava tudo pronto. Era espetacular. Ele fez muita música de Brasília, muitas músicas de amor, era um cara apaixonado pela vida."
Sérgio Duboc, poeta