postado em 22/09/2009 10:23
Fazia quase uma hora que Os Paralamas do Sucesso tinham saído do palco montado na Esplanada dos Ministérios quando Renato Russo apareceu no telão, diante da multidão. ;Não, vocês erraram!”, reclamava ele, brincando com o público, na hora de Índios. Na sequência, trechos de shows, os telejornais anunciando a morte do cantor, Dado Villa-Lobos contando o pacto que eles tinham (;A Legião éramos eu, Renato e Bonfá, se saísse um, não seria mais a Legião Urbana;), o ensaio feito dois dias antes, eles no aeroporto, Marcelo Bonfá no avião, e a placa: ;Bem-vindo a Brasília;.
[SAIBAMAIS]A plateia já berrava com as imagens do telão quando, às 21h50 de domingo, Dado e Bonfá apareceram no palco do Porão do Rock com os uruguaios Mateo Moreno (baixo), Guzmán Mendaro (guitarra) e Gustavo (teclados) e o primeiro cantor convidado da noite, André Gonzales (Móveis Coloniais de Acaju), em Tempo perdido. Outros cinco assumiriam os vocais nas músicas seguintes: Herbert Vianna (Ainda é cedo), Philippe Seabra (Geração Coca-Cola), Toni Platão (Eu sei) e os uruguaios Sebastian Teysera (Quase sem querer) e Juan Casanova (Será). Bonfá também cantou Pais e filhos e todos se juntaram no final, em Que país é este. Um microfone, no entanto, não foi usado por nenhum deles. Ficou no centro do palco, desligado, com duas flores brancas penduradas.
;Não dá para substituir Renato, chamar apenas uma pessoa. Legal é ter vários cantores, fazer uma celebração;, explicava Dado Villa-Lobos antes de subir ao palco, feliz da vida por poder participar da festa em homenagem ao rock de Brasília. ;Não tinha como a gente não estar aqui esta noite. Brasília vai fazer 50 anos e a história de pelo menos 25 deles passa por essa rapaziada que está no palco.; Dado estava feliz, mas um pouco preocupado. Não sabia como seria a reação do público à volta dele e de Marcelo Bonfá, 21 anos depois do quebra-quebra no Estádio Mané Garrincha, no último show da Legião Urbana aqui. ;Fica na lembrança, né?;
PJ, baixista do Jota Quest, também tem forte na memória aquele 18 de junho de 1988. À época, era um garoto de 18 anos que, assim como tantos outros de Brasília (ele morou aqui entre 1973 e 1991), tinha uma banda de rock. ;Comecei a tocar aqui. E eu estava lá no Mané Garrincha. Veja que loucura: quando poderia imaginar que eu estaria no próximo show deles em Brasília, tocando com eles? É inacreditável;, comemorava PJ, que subiu ao palco no fim do show, em Que país é este. André Gonzales foi outro que ficou muito feliz com o convite. ;Participar de uma celebração como essa é maravilhoso. Mas confesso que fiquei meio apreensivo, porque tenho uma memória péssima;, ria. Marcelo Bonfá também adorou estar naquele palco: ;Remocei 10 anos ao tocar com essa galera nova;.
No gramado
Na plateia, a história também foi bem diferente da de 21 anos atrás. Meninas choravam, pessoas gritavam, e a cada intervalo lá vinha o coro: ;Uh, Legião! Uh, Legião!”. Lívia Leite, 34, técnica de enfermagem, chorou o show inteiro: ;Quando eu tinha 13 anos e andava com o pessoal do rock, curtia os shows na Esplanada como agora. Parece que eles não envelheceram, o jeito de cantar é o mesmo, como se o Renato também estivesse no palco;. Heloisa Melo, estudante de 16 anos, não viveu os anos 1980, mas nem por isso parou de chorar: ;Fui apresentada ao trabalho da Legião pela minha mãe. Me tornei uma fã tardia pelas mensagens que eles passam e a história de força. Me emocionei ao perceber que passaram quase 20 anos. Parece que voltei num tempo que não vivi;.
Dado Villa-Lobos achou a resposta do público ;sensacional;. Já tinha pensado em fazer alguns shows especiais com Marcelo Bonfá, ;para celebrar aquelas canções;, mas o projeto só foi adiante depois do show que os dois fizeram em Montevidéu, em dezembro, a convite de artistas uruguaios, que selecionaram 20 músicas da Legião Urbana para apresentar numa casa chamada La Trastienda. ;Eles é que montaram o repertório, nós fomos lá para acompanhá-los. Seria um show para mil pessoas, mas a gente fez no dia seguinte também. Foi incrível;, conta. ;O mais interessante foi ver que a música que fizemos há tanto tempo tinha cruzado fronteiras. A gente mal tocava no Brasil.;
A ideia, agora, é fazer uma série fechada de shows ; ;sete, no máximo; ; em 2010, com esses mesmos músicos uruguaios e vários cantores convidados. Para ele, só faz sentido se for assim. ;Esses rumores (de uma volta efetiva da Legião) são equivocados. A gente nunca pensou em substituir o Renato e voltar a trabalhar com a Legião Urbana;, afirma.
;Isso é um absurdo;, reforça Toni Platão, apontado na semana passada como o provável ;substituto; de Renato Russo nos vocais. ;A única coisa que tenho nos meus 25 anos de carreira é a minha integridade artística. E eu jamais faria uma burrice dessas. Canto Legião no meu show, toco com Dado e Bonfá e posso fazer um ou outro show com eles. Mas prestando tributo à Legião, cantando uma música, ao lado de outros cantores. Jamais teria o topete de pegar o lugar de Renato Russo. Esse lugar é dele. Não está vago. Ele está aqui, o tempo todo. Você não sentiu?;
Colaborou Marina Severino
Artigo
Identidade brasiliense
Carlos Marcelo
Surpresa: riso e choro se misturam no momento mais aguardado da segunda noite do Porão do Rock. No palco, radiante, o vocalista André, do Móveis Coloniais de Acaju, pula e abre imenso sorriso enquanto canta Tempo perdido. Na primeira fila, espremidas na grade, cinco garotas estão aos prantos ; tinham começado a chorar na exibição do vídeo que antecedeu a entrada dos músicos da Legião e funcionou como senha para a catarse coletiva. E aumentaram o volume do choro ao escutar a introdução dedilhada por Dado Villa-Lobos.
As cinco meninas certamente não tinham idade para ter assistido, em 1988, ao último show da Legião em Brasília. Então, para elas e tantos outros jovens que passaram pela Esplanada, aí vai uma certeza: o que se ouviu na noite de domingo foi Legião Urbana, não uma banda cover. Mas o microfone posicionado no meio do palco, com duas rosas brancas no pedestal e desligado, delimitava os limites de Dado e Bonfá: por meio de um símbolo forte, avisavam que a banda não estava completa ; e caberia ao público, mais do que aos convidados, preencher mentalmente o vazio do rosto e da voz de Renato Russo. ;A Legião Urbana são vocês;, lembrou Bonfá, repetindo as palavras do líder.
Antes e depois da entrada dos músicos da Legião, porém, Brasília foi passada a limpo em suas diversas encarnações roqueiras ; metal contra as nuvens que ameaçavam chuva, punk contra os detritos produzidos ali mesmo, no centro do poder; sair da garagem para azarar na W3, misturar Luiz Gonzaga e hardcore; lembrar da piscina de ondas, do coreto do Gilberto Salomão, dos muitos porteiros e das pessoas normais. Independente da sonoridade ou década, todos com a mesma identidade.
Os organizadores acertaram ao tratar o passado musical não como peça de museu, mas como parte contínua de uma mesma realidade roqueira ; e assim deve ser vista a aparição, por exemplo, do seminal Escola de Escândalo e seus clássicos (Luzes, Complexos) tortos e desengonçados, pintados em estilo naif (se Brasília já foi Seattle, eles são os nossos Melvins). E da (ainda) feroz Plebe Rude, que, aditivada por músicos das gerações 80, 90 e 00, comprovou ser a banda certa para um país que deu errado ; mas isso é outra história, dos tempos de confronto. Agora o que reina é a necessidade de acolhimento.
De volta à catarse. Vêm Pais e filhos, Eu sei, Ainda é cedo (o momento monumental da noite, com os três Paralamas e Dado em estado de graça), Geração Coca-Cola; as cinco meninas não param de chorar. Atrás delas, a plateia incorpora o espírito de arquibancada de estádio (Mané Garrincha, enfim, exorcizado?) e comemora: ;Ô, A Legião voltou, ô, a Legião voltou, ô;;. Estão enganados. A Legião não voltou porque nunca tinha ido embora. As canções de Renato Russo, Dado e Bonfá ; e as de Fê, Flávio, Pretorius, Dinho, Loro, André X, Philippe, Jander, Gutje, Gerusa, Fejão, Bi, Herbert, para ficar apenas em nomes da geração 80 ; estão entranhadas entre blocos, quadras, eixos, asas, monumentos, palácios e ruínas de concreto. Perplexos, ainda perguntamos que país é esse; surpresos, ainda nos questionamos que cidade é essa.
Música urbana, inconsciente coletivo: eis o patrimônio imaterial brasiliense.