Diversão e Arte

Cineastas relembram história do Festival de Brasília

postado em 04/10/2009 08:00

Quando o assunto é o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, uma palavra imediatamente salta aos olhos: tradição. Mesmo em tempos de incertezas, a mostra preserva a força de traços criados ainda nos anos 1960 . Em mais de quatro décadas, a tela do Cine Brasília conquistou respeito como espaço nobre para a reflexão. Corajosamente, selecionou obras muitas vezes radicais, críticas e políticas. E formou um público exigente e participativo, sempre pronto para se fazer ouvir. No entanto, de nada valeria tanto prestígio se o festival não tivesse exibido alguns dos maiores filmes do cinema nacional.

Desde 1965, a cidade assistiu ao nascimento de clássicos como O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla, Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, São Paulo S.A., de Luis Sérgio Person, A margem, de Ozualdo Candeias, e obras-primas recentes como Lavoura arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, e Santo forte, de Eduardo Coutinho. Um legado incalculável. Em busca de lembranças de 10 sessões inesquecíveis do Festival de Brasília, o Correio conversou com cineastas como Arnaldo Jabor, Domingos Oliveira, Vladimir Carvalho, Julio Bressane e Beto Brant. São memórias de cenas carregadas de emoção, surpresa e, em alguns casos, até de frustração.

;Brasília tem tudo o que um bom festival oferece: a certeza de que seu filme passou por um crivo ético e estético; uma referência para o público que acompanha a história cinematográfica brasileira; um chamariz para os produtores e distribuidores;, afirma Luiz Fernando Carvalho, que venceu o Candango de melhor filme em 2001 com Lavoura arcaica (dividido com Samba Riachão). Prevista para o período entre 17 e 24 de novembro, a 42; edição do festival tem a missão de superar o clima de crise que se instaurou em 2008, quando a seleção de filmes foi criticada pelo público e pelos próprios jurados. Que as histórias e trajetórias dessas 10 obras-primas sirvam de inspiração.

DOMINGOS OLIVEIRA,
Todas as mulheres do mundo (1966)


Exibido na segunda edição do festival (quando ainda era chamado de Semana do Cinema Brasileiro), a crônica urbana de Oliveira sensibilizou o público e o júri. Venceu os prêmios de melhor filme, diretor, argumento, diálogo, ator (Paulo José) e produtor (Luiz Carlos Pires). Disputou com filmes como Opinião pública, de Arnaldo Jabor, e O padre e a moça, de Joaquim Pedro Andrade.

;Minhas lembranças do festival são agradabilíssimas. O filme tinha tido uma recepção anterior muito positiva, inclusiva uma crônica de Nelson Rodrigues apaixonado principalmente pela Leila (Diniz, que atua no filme). O Cinema Novo, sentindo-se ameaçado, espalhou uma ordem interna de ninguém falar com o Domingos. Ordem essa que caiu sozinha após o primeiro uísque. Depois da vitória, todos me carregaram num triunfo amigo. Não me lembro quantos prêmios que o filme levou, mas foram quase todos. Belos dias do Festival de Brasília! Os festivais naquele tempo eram poucos, e ainda tinham uma importância grande no lançamento. Mas não decisiva. Antigamente ainda valia o boca-a-boca. Hoje verba e orçamento é o que importa. Mas aquele festival foi inesquecível. A sessão foi uma festa de alegria e emoção. Quando tem que dar certo, dá.;

Assista ao trailer:

ANDRÉ LUIZ OLIVEIRA,

Meteorango Kid, herói intergalático (1969)

Marco do cinema marginal, o longa de André Luiz Oliveira (que venceria o festival com Louco por cinema, em 1994) levou os prêmios de júri e de público. A disputa principal ficou entre Macunaíma e Memória de Helena, que saiu campeão. Com uma sessão atribulada, sob ;supervisão; de censores, o longa provocou comoção no Cine Atlântida, onde a mostra foi realizada.

;A sessão foi tumultuada. A censura criou dificuldades. Até o último momento, não sabíamos se o filme seria exibido. Havia uma pressão de um lado para que o filme fosse interditado, mas, ao mesmo tempo, existia o respaldo de personalidades do cinema como o Paulo Emílio Sales Gomes. A CNBB também deu uma força. Os censores não proibiram o filme. Deixaram ele ser exibido. Mas eles tinham o controle, na cabine de projeção, do volume do som. Quando tiravam o volume, todo o cinema vaiava. As pessoas sabiam que havia censores na cabine. Diante disso tudo, me levantei para ir embora e o Walter da Silveira (teórico baiano de cinema), que foi meu mentor, me pediu para ficar. Ele disse que o mais importante era a exibição do filme. Foi uma situação muito tensa para mim. Não vi nada do filme. Fiquei nessa agonia. Algo insólito. Mas muitas coisas que aconteciam na época parecem piadas. Eram lamentáveis. Eles não cortaram nada, mas o pior veio depois: o filme ficou interditado por um ano. Depois de um ano o filme foi lançado. Mas, para ser exibido, tinha que apresentar uma mensagem no início e no fim da projeção, que dizia assim: ;Todos nós carregamos uma cruz, herança do calvário, e nos crucificamos nela;. Uma coisa maluca.;

Assista ao trailer:

LUIZ FERNANDO CARVALHO,

Lavoura arcaica (2001)

O primeiro longa-metragem do diretor, inspirado no livro de Raduan Nassar, foi muito aplaudido numa sessão superlotada. Dividiu o Candango de melhor filme com o documentário Samba Riachão, de Jorge Alfredo. Venceu ainda os prêmios de ator (Selton Mello), atriz coadjuvante (Juliana Carneiro da Cunha) e ator coadjuvante (Leonardo Medeiros).

;De saída, me assustei com o tamanho da sala. Era uma catedral. Um templo cheio de anjos e demônios, eu olhava e via cada um em seu canto. Na hora da sessão surgiram milhares de pessoas, o dobro da capacidade da sala, o que fez com que o início da projeção atrasasse. Corri para a cabine, sentindo um misto de euforia e medo, e não sabendo exatamente o que podia acontecer, disse para mim mesmo: um bando de famintos. Era isso! De uma forma difícil de explicar, mas, por alguma razão, os uivos do filme se espalharam pela sala antes da sessão. Sentir o que acontecia ali me fez perceber que estava no lugar certo e na companhia das pessoas certas. A luz da sala se apagou em meio aos gritos. Que o filme seja o que essa turma quiser que ele seja, pensei mais uma vez. Arreganhei meus olhos por entre a escotilha da sala de projeção e então pude ver, lá embaixo, a catedral submersa em um silêncio que jamais esquecerei.;

Assista a um trecho aqui:

Ouça entrevistas com os cineastas Julio Bressane e Beto Brant


Beto Brant relembra as sessões dos seus filmes no Festival de Brasília

Julio Bressane relembra as sessões dos seus filmes no Festival de Brasília

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