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Crônicas Inéditas 2 mostra Manuel Bandeira como um dos maiores prosadores da língua portuguesa

Severino Francisco
postado em 18/10/2009 07:00

Quase todos nós temos um verso de Manuel Bandeira na cabeça. ;Teu corpo é tudo que brilha, teu corpo é tudo que cheira/Rosa, flor de laranjeira/Teu corpo, a todo momento o vejo/A única ilha no oceano do meu desejo;. Mas poucos sabem que, além de poeta requintado, Bandeira era também um dos grandes prosadores da língua portuguesa. E desconhecem por uma razão muito simples: diferentemente do que ocorreu com outros grandes poetas do modernismo, tais como Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade ou Cecília Meirelles, a sua obra em prosa saiu de catálogo ou jamais foi publicada em livro. Aliás, no Brasil, nós temos que dar graças aos deuses porque os maiores nomes do modernismo precisaram colaborar com a imprensa para pagar a conta do aluguel. Esta colaboração nos legou uma herança preciosa.

<i>CRÔNICAS INÉDITAS 2
Manuel Bandeira/CosacNaify, 477 páginas. R$ 69.</i>A editora Cosac & Naif está realizando um belo trabalho de escavação arqueológica da prosa de Bandeira e acaba de publicar Crônicas inéditas 2. Sem esta pesquisa, muita coisa se perderia inapelavelmente. Prova disso são algumas frases truncadas nos textos, pois a ação do tempo tornou ilegíveis certos trechos dos jornais. É quase que um no vo Manuel Bandeira(1) que emerge da operação.

Ele escreve com rara elegância, naturalidade, fluência e graça, misturando a linguagem clássica e a moderna, a erudição e a leveza. Que classe Bandeira revela ao discorrer sobre qualquer assunto! O leitor distraído que entrar em uma livraria e folhear o volume de suas crônicas inéditas vai se deparar com frases saborosas como esta: ;É inútil pensar em planos urbanísticos nesta terra tão linda e tão infeliz. O Rio tem que crescer como as favelas. Na realidade a nossa capital é uma enorme favela: uma favela com arranha-céus;;.

Este volume 2 das crônicas inéditas (1930-1944) reúne textos esparsos de um franco atirador, mas armado de um senso crítico agudo, ao comentar sobre assuntos tão díspares quanto o barroco de Ouro Preto, a poesia de Vinicius de Moraes, a pintura de Portinari, os salões de arte, os lançamentos literários, entre outros. A crônica de Bandeira tem a ver menos com a espontaneidade modernista de Rubem Braga e mais com o pré-modernismo de Machado de Assis, Lima Barreto e João do Rio. Ela se encaixa mais na vertente do artigo leve ou das impressões críticas.

O que faz a diferença é a cultura, a agudeza e a verve de Bandeira. Claro que a coletânea de colaboração tão errática com a imprensa só poderia ser desigual. Contudo, a relevância do assunto pouco importa; o que interessa é o olhar ilustrado, arguto e imaginativo de Bandeira: ;Os bons autores levam à imitação e ao decalque. Os maus é que são as boas influências: mostram o que não se deve fazer;.

<i>O poeta ao lado do próprio busto: a sua prosa é um banho de água pura, para lavar o corpo e a alma</i>Armado de instinto certeiro, ele detectou, por exemplo, em 1933, que, com todos os seus defeitos e maneirismos, o novato Vinicius de Moraes era um grande poeta: ;Mas dos livros que nomeei atrás o que revela maior fatalidade de vocação é, sem dúvida, o do sr. Vinicius de Moraes;. Ele é um mestre em aliar algo aparentemente inconciliável, elegância e contundência crítica, que parece ser um traço típico de certo espírito aristocrático recifense. Vejam a observação que Bandeira faz a propósito das mesquinharias de Machado de Assis, após a leitura de uma biografia sobre o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, escrita por Lúcia Miguel Pereira: ;Pouco importa que dentro desse repouso o romancista tenha criado uma grande obra. Essa obra nos enche de admiração mas deixa-nos no coração um sentimento amargo;.

Esta edição, em formato de livro de arte, é impecável e está à altura da excelência do texto de Bandeira. O posfácio de Júlio Castañon Guimarães situa o leitor com precisão na obra de Bandeira, aliando o rigor acadêmico da pesquisa a um texto acessível aos mortais. Onde estiver, Bandeira deve estar satisfeito com essa edição, ostentando aquele clássico sorriso de quem, segundo ele próprio, engoliu um teclado de piano.

Rubem Braga

Em um texto para a contracapa do livro, o crítico Davi Arrigucci Jr. escreve que Bandeira se revela ;um cronista de mão cheia, de fazer inveja a Rubem Braga;. É boa a provocação; realmente, algumas crônicas de Braga poderiam ser assinadas por Bandeira, mas a recíproca não me parece verdadeira. O Bandeira que Rubem Braga venerava era o da poesia. Braga era um caboclo modernista e a simplicidade de sua frase é um mistério inimitável. Já Bandeira é um intelectual de alta classe, que sempre reverenciou o lirismo da crônica de Braga. O que Bandeira faz nestas crônicas é uma prosa crítica com voo de poeta.

Ao terminar as mais de 400 páginas do livro a sensação que fica é a de ter mantido uma conversa inteligente, culta e agradável com esse poeta tão elegante, espiritualmente elegante. Os que supostamente escrevem bem se sentirão, a um só tempo, humilhados e provocados pelo primor desta escrita fina, espirituosa e rica em matizes. Como diz o poeta Armando Freitas Filho: a prosa de Bandeira é um banho de água pura, que lava o corpo e a alma.


1- Inspiração popular

Manuel Bandeira (1886-1968) nasceu no Recife e é um dos grandes poetas brasileiros modernos. Escreveu versos inesquecíveis inspirados na lírica popular e no arsenal de recursos da poesia moderna, mas mantendo sempre independência em relação aos excessos sectários do movimento modernista. Sua poesia é musical, coloquial, fluída e bem-humorada, com gosto de quadrinha popular. Radicado no Rio de Janeiro desde 1896, participou intensamente da vida cultural na condição de poeta, tradutor, professor, ensaísta e crítico. Escreveu, por exemplo, o primeiro artigo revelando o talento de dramaturgo de Nelson Rodrigues, ao comentar a peça Vestido de noiva.


O PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA
por João Cabral de Mello Neto

"Recifense criado no Rio, não pôde lavar-se um resíduo: não o do sotaque, pois falava num carioca federativo. Mas certo sotaque do ser, acre mas não espinhadiço, que não pôde desaprender nem com sulistas nem no exílio."


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