Severino Francisco
postado em 23/10/2009 08:46
Os confrades estão em estado de graça. Eles acabaram de receber um presente dos deuses: uma caixa com esmerada edição artesanal de 36 crônicas de Rubem Braga ilustradas pelo amigo Millôr Fernandes. Para quem não sabe, os confrades são os 400 sócios da Confraria dos Bibliófilos do Brasil, uma instituição sem fins lucrativos criada em Brasília, que publica obras clássicas da literatura brasileira sempre com a intervenção de um grande artista gráfico. Braga habitava uma célebre cobertura em Ipanema, onde cultivava preciosas espécies de frutas e era prestigiado pela presença de beija-flores, canários, pintassilgos e de uma confraria de seletos amigos. Ganhou o apelido de ;fazendeiro do ar;. Certo dia, o síndico do prédio fez uma sondagem a Braga para saber como receberia os outros condôminos do bloco caso fossem visitá-lo em seu refúgio aéreo: ;A bala;, respondeu Braga, fulminante, encerrando o assunto. Millôr era vizinho em outra cobertura e os dois se comunicavam por mímica todos os dias até a paisagem ser soterrada pela especulação imobiliária. Os dois amigos se reencontraram no livro graças ao empenho e engenho de José Salles Neto, o presidente, editor, motorista e office- boy da Confraria dos Bibliófilos.
[SAIBAMAIS]Salles é um ex-engenheiro da Telebrasília que só pensa naquilo: livro. Ele sempre imaginou Millôr para ilustrar o de Rubem Braga e não ficou com medo da fama de intratável do humorista que já escreveu: ;O humor nada tem a ver com o bom humor e quando os dois ocorrem juntos é mera coincidência;. Só com a cara e a coragem, Salles já conseguiu envolver, na condição de cúmplices dos seus projetos de livros da Confraria, Dalton Trevisan, Ferreira Gullar, Luís Fernando Veríssimo, Rubem Fonseca, Rubens Gerchman, Poty, Renina Katz, entre outros. Salles contamina a todos com a sua paixão pela cultura e pelo livro. É cerimonioso, polido, educado, mas tenaz: ;Eu aviso logo, aqui tem de tudo, menos dinheiro;.
Poty, o ilustrador dos livros de Guimarães Rosa, lutou bravamente contra o assédio de Salles para fazer um livro para a Confraria, mas, finalmente, entregou os pontos: ;Eu nunca vi uma pessoa tão persistente. Vou fazer as ilustrações porque senão o maldito espírito ro Rosa vai ficar me atormentando;. Nem o misterioso Dalton Trevisan, o vampiro de Curitiba, resistiu à lábia mineira do Salles.
Por todo esse histórico, Salles não se intimidou com Millôr, que logo topou fazer as ilustrações, mas ficou assustado quando soube que teria que fazer mais de 10: ;Estou de saco cheio de desenhar;. Prontamente, Salles contra-argumentou que havia lido uma entrevista em que Millôr declarava que preferia desenhar a escrever: ;Não acredito que eu tenha dito uma asneira destas. Neste mundo tem otário para tudo. Me manda o jornal;. Salles enviou o recorte: era uma entrevista de Millôr ao Correio em 2007. Millôr contra-atacou: ;Estou percebendo que você é daqueles caras obsessivos dos filmes americanos. Você tem certeza que não vai me matar, Salles?;.
No fim, era Millôr quem cobrava: ;Cadê o livro, Salles? Eu vou fazer 120 anos e este livro não sai;. Aparentemente, Millôr é ácido e Braga é um delicado. Mas, na verdade, esta edição mostra que os dois possuem muitas afinidades. Em sua ironia fina, Braga é delicadamente maldoso e, em sua contundência, Millôr é acidamente lírico. O que resultou em uma parceria muito afinada. As 36 crônicas foram escolhidas em razão da qualidade, mas também pela capacidade de sugerir imagens para as ilustrações.
Braga era um jornalista, mas dentro do jornalista havia um escritor, um poeta e um humanista. Despretenciosamente, o que ele nos oferece é uma arte de viver, espalhando a sua ternura vagabunda pelos seres humildes e arrancando poesia das situações triviais da vida. A simplicidade e pureza da frase deste caboclo modernista é um mistério inimitável. Vinicius de Moraes escreveu que a crônica deve ser um copo de água fresca, limpa e luminosa. Mas a crônica de Braga parece ser uma força da natureza, água viva manando diretamente das pedras.