Sete parecia ser o número de sorte de João Almino. No entanto, após 21 anos de ficções lançadas a cada sete anos, a última em 2008, o escritor e embaixador brasileiro pretende quebrar a sequência e lançar mais um romance ; o quinto de sua série passada em Brasília ; no ano que vem. A motivação, o cinquentenário da construção da capital do país, dita também o enredo da nova história, baseada em lembranças de antigos moradores e acontecimentos do período entre 1956 e 1960. Em Brasília para uma conferência, João Almino antecipou o enredo e um fragmento do texto ao Correio.
A história acontece na primeira cidade-satélite do Distrito Federal, a Cidade Livre, criada provisoriamente para abrigar trabalhadores das construções e que, mais tarde, daria origem ao Núcleo Bandeirante. ;O enredo se passa antes da inauguração e contém, mais do que nos demais tomos do quinteto, elementos históricos. Como sempre, há algum personagem que migra de um livro para o outro, mas, também como ocorreu nos anteriores, esse personagem é visto de um ângulo novo. Apesar disso, esse e os outros romances podem ser lidos de maneira totalmente independente;, adiantou João Almino.
Há 22 anos, o escritor explora o cenário brasiliense para desenvolver o que chama de uma ;literatura sem raízes;, fruto da recente construção da capital em comparação às demais unidades da Federação, e desenvolve experimentações literárias a partir do sentimento de despertencimento das personagens. Essa linha resultou nas ficções Ideias para onde passar o fim do mundo (1987), Samba-enredo (1994), As cinco estações do amor (2001, vencedor do Prêmio Casa de las Americas em 2003) e O livro das emoções (2008). Além das ficções, João Almino é um aficionado por literatura, com ensaios publicados em Escrita em contraponto (2008) e um estudo sobre Machado de Assis, O diabrete angélico e o pavão: Enredo e amor possíveis em Brás Cubas (2009).
Especialista em história e filosofia política, em consequência da carreira, João Almino fala com propriedade de Brasília por ser, como muitos de seus personagens, um morador transitório ; o escritor é natural de Mossoró (RN). Desde o primeiro romance, sua relação com a capital mudou de forma intensa. Começou na década de 1970, em férias na cidade, se reforçou durante as duas décadas seguintes, quando entrou para a diplomacia e assumiu a direção do Instituto Rio Branco, e continua mesmo com a saída do país em 2004, quando assumiu a função de embaixador. ;Pelo menos de uma forma consciente para mim, creio que deixar de morar em Brasília não afetou minha escrita. A literatura é, no meu caso, produto de um trabalho solitário de reflexão e pesquisa que pode ser realizado em qualquer lugar;, acredita.
; Diálogo com Escritores
O Quarteto de João Almino
Hoje, às 10h, no Auditório da Reitoria da Universidade de Brasília, mesa- redonda com João Almino, Barbara Freitag Rouanet, Gustavo Lins Ribeiro e Eloísa Barroso. Entrada franca e classificação indicativa livre.
; Três perguntas
De O livro das emoções para cá, você se mudou de Brasília por motivos profissionais. Como isso afeta seu processo de criação?
As informações a que eu tenho acesso em cada lugar podem influir no que escrevo, mas não a ponto de interferir na forma de escrever e nas tramas da história.
Com a recente publicação de As cinco estações do amor na Argentina, como você avalia a recepção da sua obra ficcional em outros países?
Da mesma forma como no Brasil. Não sou um autor de best-sellers, mas tenho contado com a boa crítica e um pequeno público fiel e entusiasta.
A característica universal de Brasília, traduzida em seu livro pela ausência de regionalismo e por personagens, em consequência, singulares, colaboram para a receptividade das histórias em outras culturas?
Não creio. A visão do exótico, os aspectos pitorescos de um lugar e até mesmo os estereótipos podem às vezes ser mais atraentes. O leitor, em geral, seja no Brasil ou no exterior, se surpreende ao ver Brasília associada à literatura ou esperaria de uma literatura de Brasília que fosse apenas preocupada com o poder ou as intrigas políticas. São razões de sobra para remar contra a correnteza. Dito issto, acho que, por mais universal que seja, uma literatura não deixa de refletir de alguma forma as experiências do lugar de onde provém e terá tanto mais impacto sobre o leitor quanto melhor possa criar personagens singulares e convincentes, que sejam percebidos como verdadeiros no âmbito da realidade ficcional.
; Leia trechos do livro inédito e de Ideias para onde passar o fim domundo, Samba-enredo, As cinco estações do amor e O livro das emoções.
(;)Para mim era como pular um muro para cair no coração do país, um coração que batia como o meu. Com a forma de borboleta que Lúcio Costa lhe deu, Brasília era um ponto livre no espaço vazio, com direito de voar e crescer para qualquer lado. Seu astral oscilava entre o firmamento infinito e o barro molhado e escuro ; onde, com prazer, eu sujava meus pés e que contrastava com os eixos limpos e com o verde organizado em grandes quadrados. (;)
(As cinco estações do amor)
(;) Por isso
aos ratos
meus rabiscos.
Deles é o futuro do mundo, já daqui a cinquenta milhões de anos, segundo a teoria da evolução das espécies. Tanto mais que sou brasiliense. Não tenha você dúvida de que a Brasília pertence o futuro da humanidade, futuro desta história, pois em nenhuma outra parte haverá ratos maiores, mais belos, mais desenvolvidos que os daqui. Os ratos e as plantas secas do Planalto sobreviverão. E com eles Brasília. (;)
(Ideias para onde passar o fim do mundo)
"Em Brasília, até parece a estação seca. Ninguém imaginaria que está por vir a tormenta. Nenhuma nuvem. Galhos nus, contorcidos, beiram os eixos.
Mas o sítio de Eva, a irmã do presidente, está bem verde. Mostro-o, no começo, a você, caro usuário, antes de invadirmos a cidade, pois, entre os inanimados, ele talvez seja o principal personagem ausente dessa história, com seu jatobá que ali nasceu muito antes de Brasília, seus cajueiros, mangueiras e trepadeiras de maracujá.
Mais tarde você entenderá.
Não só o sítio é um grande personagem ausente, mas também a sua dona, Eva Fernandes. Ela passa o carnaval sozinha e triste. Eu me desculpo por anunciar aqui que ela anda com a vida abalada e no fundo está deprimida. Cadu, seu marido, está no Rio, sem dar notícias. Ela está incomodada, incômodo de mulher. De manhã o tampão não dava conta da hemorragia, uma enxaqueca típica lhe dera náusea, dor de cabeça e o corpo todo doía. Desiste do desfile. À tarde, caminha sozinha pelas imediações da W-3, do galpão do samba, passa pelos eixos, mas, como se pressentisse o que aconteceria com o irmão, não quer se acercar do palanque montado para ele. (;)"
(Samba-enredo)
"Em teoria, tirando a visão apocalíptica e paranóica, eu podia concordar com o Guga. Se não fosse pela presença de Marcela, me calaria, pois não saberia dizer melhor do que ele. Mas Marcela valia o sacrifício dos meus argumentos em sua defesa. Reuni tudo o que pude de minha inteligência e sabedoria e opinei que;
Não vem ao caso e na verdade já esqueci. O principal foi que minhas palavras serviram de introdução a um convite a Marcela. Propus assistirmos a uma comédia leve no Pier. Como as filas eram longas, pulei o pretexto e caímos no apartamento da 104. Marcela não era nenhuma Joana, mas eu era pragmático. Melhor uma pomba na mão. (;)"
(O livro das emoções)