Diversão e Arte

Com a popularização da câmera digital, fotógrafos amadores conquistam o mundo e a Internet

Nahima Maciel
postado em 03/11/2009 08:35
Jorge Diehl, Júlia Salustiano, Gabriela Freitas e Fred Cintra: paixão únicaA fotografia amadora ganhou fôlego quando as câmeras digitais começaram a substituir o tradicional filme em 35mm. Sem a necessidade de passar por laboratórios e lojas que encarecem o processo fotográfico, uma massa de jovens aspirantes e curiosos se aventurou no exercício de uma prática que passou de mágica a instantânea. Lá se vão quase 100 anos desde que a Kodak criou o slogan ;Você aperta o botão, nós fazemos o resto; .

Não há muito mais ;restos; a serem feitos. Hoje, quem aperta o botão faz também o restante. ;Todo mundo está fotografando. É uma nova etapa na fotografia digital. Todos têm acesso, é mais barato e é uma forma mais ampla e democrática, deixou de ser para especialistas. Antigamente o fotógrafo precisava conhecer muito mais;, admite o bancário Jorge Diehl, fundador do Candango Fotoclube, coletivo que reúne 40 fotógrafos, a maioria amadores.

A fotografia digital é a ponte para a desmistificação da técnica. O aprendiz pode desenvolver qualidade visual de maneira rápida. As câmeras analógicas exigem o conhecimento do processo físico e químico de nascimento da imagem para que o fotógrafo seja capaz de ajustar todas as condições de luz favoráveis ao registro. No mundo digital, as soluções são propostas pela própria câmera. É um ganho, mas também implica perdas. ;A possibilidade de tirar várias imagens para pegar uma deseduca o olhar;, sugere Rinaldo Morelli, criador da Afoto, associação de profissionais e amadores que reúne 35 fotógrafos.

Mas há os que comemoram: ;A sensibilidade de você poder fotografar tudo o tempo todo sem se preocupar com filmes e revelações faz com que as pessoas desenvolvam um olhar mais específico e uma estética própria;, acredita Humberto Lemos, que fez do Fotoclube f508 um centro de reflexão e aprendizado da fotografia para amadores.

A qualidade da produção amadora tem chamado a atenção de Lemos. O f508 mantém três cursos que vão do básico ao profissionalizante. A média é de 10 alunos por turma com idades que variam de 12 a 70 anos. Além de mostras eventuais como a série de projeções do Projeto Lambe-Lambe, o f508 investe em programas de inclusão social por meio da imagem.

Mas é nos sites e comunidades virtuais que a maioria dos amadores divulga e apresenta suas imagens, como no flickr (leia mais na página 3). ;A internet fornece os espaços para que essa fotografia amadora se desenvolva. As pessoas têm muito mais espaço agora para buscar referências e é mais fácil entrar em contato com os trabalhos dos outros, além de mostrar o próprio trabalho para ser avaliado;, constata Gabriela Freitas, professora da Universidade de Brasília (UnB), fotógrafa amadora e autora de dissertação de mestrado sobre a linguagem fotográfica nas comunidades virtuais. Acima, o Correio apresenta uma seleção de imagens realizadas por amadores do Distrito Federal e cuja qualidade desperta o interesse de professores de cursos de fotografia e internautas conectados em comunidades virtuais.

Gabriela Freitas ; 29 anos, designer e professora da UnB, já participou de fotoclubes e fotografa de maneira amadora. ;As comunidades virtuais são excelentes ferramentas que poderiam estimular o desenvolvimento da linguagem fotográfica, mas muitas vezes ficam centradas na identidade e laços sociais. Isso é predominante, mas a internet é muito móvel e tudo pode mudar de uma hora para outra.;

Helio Rocha ; 55 anos, funcionário do Banco Central, fotografou pela primeira vez quando garoto e chegou a montar laboratório para revelar as próprias fotos, mas parou durante um tempo porque era muito caro. ;A foto digital reavivou a possibilidade de fazer isso com um custo mais acessível. O processamento digital é bem mais acessível, mais limpo e melhor para a saúde. Isso facilitou a vida dos amadores.;

Fred Cintra ; 29 anos, engenheiro de controle e automação, trabalha em empresa privada e frequenta cursos de fotografia e fotoclubes desde 2000. Gosta de fotografar espetáculos e atraiu a atenção de profissionais com imagens realizadas durante curso especial de fotografia de palco do Cena Contemporânea. ;Gosto muito de fotografar espetáculo porque pega a emoção do artista, você não pode ficar triando várias fotos, tem que esperar o momento decisivo da peça para não incomodar espectadores com o barulho da câmera. É um hobby, não penso em largar a engenharia.;

Leo Amaral ; 39 anos, economista, é um dos fundadores do coletivo Distrito Fotográfico, criado em 2008 para organizar saídas de fotógrafos amadores. Sempre gostou de fotografia, mas o alto custo do equipamento analógico impedia o desenvolvimento do hobby. As câmeras digitais possibilitaram o ingresso de Amaral no meio amador. ;Com o digital ficou mais fácil. Era uma forma de interagir melhor com meus filhos e documentar o crescimento deles. Fotografia, para mim, além de hobby é terapia.;

; Olhar e requinte

Uma galeria destinada a fotógrafos profissionais será aberta hoje. A questão ética preocupa

A fotografia digital alterou o mercado. Além da enorme quantidade de amadores que produzem imagens de qualidade, o mundo profissional sentiu a mudança. Se a democratização é benéfica para o acesso rápido à técnica, ela também implica questões éticas. A quantidade de imagens disponíveis e a redução nos custos de produção ajudaram a baixar os preços do mercado. Por isso, iniciativas coletivas ganham espaço na tentativa de agregar, informar e discutir os novos rumos da fotografia.

Brasília conta com pelo menos três fotoclubes e uma associação. São grupos que geram listas de discussões na internet e promovem eventos pontuais ou periódicos. O Fotoclube f508 organiza o projeto Lambe-Lambe, projeções de profissionais e amadores que invadem o Cabíria Cine-Café (413 Norte) eventualmente. No Candango Fotoclube, profissionais e amadores se mesclam para compartilhar as experiência e o Distrito Fotográfico surgiu para planejar as chamadas saídas fotográficas, nas quais um grupo de fotógrafos se desloca pela cidade durante um ou mais dias com a intenção de produzir ensaios.

A partir de hoje, a cidade contará também com uma galeria especializada exclusivamente em fotografia. Criada por Kazuo Okubo, a Casa da Luz Vermelha ocupa um espaço de 130m; no clube da Associação dos Servidores do Banco Central (Asbac) e conta com um calendário de exposições e acervo próprio. ;É uma forma de valorizar a fotografia porque os mercados vão se aviltando com a concorrência do dia a dia. A galeria é a busca de um espaço para a fotografia, que muita gente não enxerga como arte. É uma forma de valorizar o fotógrafo;, avisa Okubo, fotógrafo especializado em publicidade e agora procura uma vertente mais autoral na tentativa de sobreviver no mercado.

A primeira exposição da Casa da Luz Vermelha tem início hoje com um time de fotógrafos radicados em Brasília e alguns em outras cidades. A curadoria é da pesquisadora Rosely Nagakawa, que selecionou nomes como Anderson Schneider, André Dusek, Patrick Grosner, Ricardo Labastier e Cristiano Mascaro em meio a 35 portfólios apresentados por Okubo.

Ao lado, o Correio selecionou imagens de fotógrafos profissionais em atuação no Distrito Federal, todos com participações em festivais, prêmios e livros publicados. Algumas das fotos integram a exposição da Casa da Luz Vermelha, outras foram selecionadas pelos próprios fotógrafos com base em suas produções e projetos mais recentes.

Patrick Grosner ; 39 anos, nasceu em Brasília e trabalha com várias linguagens, do fotojornalismo à publicidade. O interesse especial pela música o levou a documentar bandas de rock nos anos 1990 e a assinar algumas das imagens de capas de discos. Este ano, uma foto de Grosner foi escolhida para integrar o livro Encontros com a fotografia, lançado pela Fnac, ao lado de medalhões como Sebastião Salgado e Thomaz Farkas. ;Atiro para tudo que é lado, faço um pouco de jornalismo, publicidade, retrato, muita capa de disco, shows. Não gosto de ser fotógrafo de uma coisa só, mas tudo acaba sendo uma reportagem, é bem documental. Gostaria muito de ainda poder fotografar em filme, mas as pessoas não querem isso, os preços mudaram. Me adaptei, é uma necessidade do mercado.;

Anderson Schneider ; 34 anos, cobriu parte da Guerra do Iraque em 2004 e desde então se dedica a projetos autorais intercalados com trabalhos institucionais. Este ano deu início a um conjunto de ensaios sobre Brasília. Com título de Brasília concreta, as imagens devem virar livro e exposição em 2010 para comemorar os 50 anos da cidade. ;Dizem que Brasília é uma cidade de cartão postal, eu estou procurando o verso desse cartão. Brasília nasceu de uma ideia que virou uma cidade. Cinquenta anos depois, qual a resposta que a cidade dá para o traçado original? Procuro as esquinas de Brasília, estou atrás das frestas do mármore do monumento, atrás da vida concreta e real.; Schneider também tem fotos na Coleção Masp/Pirelli.

Ricardo Labastier ; 37 anos, nasceu em Olinda e adotou Brasília há uma década para trabalhar em fotojornalismo. Hoje se dedica ao trabalho autoral e já publicou ensaios nos livros Eu engoli Brasília ; Nicolas Behr e Caipira extremoso ; Roberto Corrêa, da coleção Brasilienses. Labastier também tem três fotos na Coleção Masp/Pirelli, o mais importante acervo de fotografia brasileira contemporânea do país, e participou dos festivais PhotoEspaña (Madri) e Noorderlicht Photofestival (Holanda). A imagem ao lado é fruto de uma nova experiência, uma série de retratos realizados em estúdio com naturezas mortas que remetem ao cerrado.

; O gosto dos retratos

Leonardo Cavalcanti

Um território livre de dogmas, onde o que vale é o simples prazer de tirar fotos. Algumas mais amadores, outras menos. No www.flickr.com, podemos brincar de retratista sem ser tornar um cara chato, como aqueles que pensam que é preciso uma iluminação ; no sentido transcendental da palavra ; para ser fotógrafo. Eles não entendem que fotos são, desde sempre, lúdicas ; no sentido do que se faz com gosto ;, mesmo quando servem para denunciar misérias humanas e guerras estúpidas.

Há outro ponto sedutor no site de relacionamento para quem fotografa, o flickr, que é a chance de trocar impressões sobre fotos com alguém que você nunca viu e talvez nunca venha a conhecer. É a antítese do ato insuportável de mostrar retratos aos amigos e, pior, obrigá-los a ver álbuns, digitais ou não. No site, as fotos são postadas para serem vistas quando bem entender. Contemplar a qualquer momento. Estimular amadores ou simplesmente ignorar retratos banais. Há milhares deles no flickr. Mas é possível encontrar coisas prazerosas, feitas, por exemplo, por contatos desconhecidos de um país qualquer.

Eraldo Peres ; 50 anos, carioca radicado em Brasília há 44 anos, é fotojornalista da The Associated Press (AP) e proprietário da Photo Agência. O trabalho autoral inclui, principalmente, a documentação de festas populares. O tema já rendeu o livro O encantador seu Teodoro do Boi, e até 2010 Peres lança Festa brasileira, com registros das principais celebrações populares de origem religiosa do país.

Rinaldo Morelli ; 40 anos, fundou o coletivo Ladrões de Almas em 1988 com um grupo de artistas plásticos interessados em discutir fotografia. Este ano participou da criação da Afoto, associação formal, com estatuto e objetivo de debater sobre fotografia. Morelli desenvolve trabalho mais abstrato e sua foto nesta página foi realizada com câmera analógica Lomo, produzida na Rússia e responsável por efeitos imprevisíveis devido a problemas técnicos e lentes de plástico. O que era um defeito virou uma qualidade e o aparelho é hoje disputado por fotógrafos originários das artes plásticas, como Morelli.

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