Ao pisar em território virgem ; uma nova instalação do Centro Cultural Banco do Brasil ; quatro das mais renomadas atrizes de Brasília, a partir de hoje (em sessão para convidados), responderão por desafio genuíno proposto pela peça Cabaré das donzelas inocentes. No palco, as personagens de três prostitutas e de uma cafetina, cada uma imersa nos seus dissabores, convidam espectadores (a partir de amanhã) para a identificação com os dramas relatados.
;Ser prostituta é apenas uma das matizes nessas inúmeras cores presentes na vida delas;, conta Catarina Accioly, atriz que, ao lado da colega Adriana Lodi, se mobilizou para concretizar a montagem da estreia na dramaturgia feita pelo jornalista Sérgio Maggio, do Correio. ;A verdade cênica foi construída a partir da verdade de cada uma de nós, enquanto mulheres, independente da profissão das personagens;, explica a atriz Bidô Galvão, tarimbada por 30 anos de palco. ;A ideia foi fugir do que seria esperado de se discutir dentro de um cabaré. Trata mais da ausência do glamour, do fetiche. A decadência do humano é o aspecto mais abordado;, demarca Adriana Lodi.
As questões humanas se projetam à frente do discurso de cada uma das intérpretes. ;Minha personagem (Minininha) sofre de amor, por ter sido rejeitada, na condição de mulher apaixonada. No texto, aparece a fragilidade, mesmo com a virulência presa ao discurso de cada uma das personagens que, mesmo com embates fortes, ainda se ligam por bela fraternidade;, avalia a atriz Carmem Moretzsohn, outra veterana dos palcos locais. Nos bastidores, todas as envolvidas saúdam o trabalho de direção de Murilo Grossi e William Ferreira, integrados ao círculo de amigos que compõem a equipe. ;Eles capturaram a questão da sexualidade, mas com o pesar das marcas que a sexualidade, enquanto profissão, traz;, define Adriana Lodi, há 11 anos ;recheada por aventuras teatrais;.
Idealizada ao longo de quatro anos ; tendo por base o livro-reportagem Conversas de cafetinas, sedimentado por 11 anos de pesquisas de Sérgio Maggio ;, Cabaré das donzelas inocentes alinha personagens como Cabeluda (papel a cargo de Catarina Accioly), vítima de exploração sexual dentro do ambiente familiar, e Saiana (Lodi), amparada pela companhia de um facão que lhe garante a defesa num mundo desestruturado. Lésbica, Minininha ; a postos para chamar clientes ; vem enriquecida por loucura (adendo de Carmem Moretzsohn) que embaralha a plateia quanto à realidade ou ao plano da fantasia.
;Cuidamos de manter uma dose de sensualidade. Mesmo sem nudez em cena, acho que nós quatro, nos ;desnudando; de uma forma nova. Estou com uma postura diferente, muito despudorada, ao falar. A linguagem está muito forte. Não amenizamos os palavrões, enfatizados. Mas, não poderia ser de outra maneira;, explica Moretzsohn.
Desgastadas
Com o diferencial de assumir, orgulhosa, a prostituição como uma escolha de vida, Saiana dispõe de um repertório de brutalidades. ;As personagens estão um pouco em estado de decomposição. Daí, ocupar um espaço alternativo (antes, um antigo depósito), que está em construção e abriga 100 pessoas, agregou muito para as personagens, pelos ensaios num local ainda um pouco abandonado;, aponta Adriana Lodi. No enredo da peça, enquanto Saiana assume a escolha da profissão, a rejeição de experiências sexuais desencaminha Cabeluda. ;A personagem enfrenta a vida, com o refúgio na bebida. Chamá-la de alcoólatra seria moralismo;, observa Catarina Accioly, que define a peça como ;uma sequência de dores, mas em que cabe o humor, mesmo não sendo uma comédia;. ;É tão trágica que chega a ser engraçada;, diz.
Figura paradoxal em Cabaré das donzelas inocentes, a cafetina China ganha forma em Bidô Galvão, que apresenta uma contradição vivenciada: ;Ela é a dona daquele espaço (o cabaré) que já não existe mais. Ainda tenta controlar algo que já fugiu ao controle;. Bidô comenta que há o contraponto entre o imaginário visto na tevê (associado ao Nordeste, em novelas como Tieta) em relação à contemporânea realidade das prostitutas, numa função que foi dissolvida. ;Elas se tornaram obsoletas, e isso propicia vasculharmos em algo perdido no tempo e no espaço. Tratamos de um universo atemporal, em que valores de hierarquia e moral são questionados;, conclui.
Serviço
Centro Cultural Banco do Brasil (SCES, Tc. 2, Cj. 22; 3310-7087). De amanhã a 6 de dezembro. De quinta a sábado, às 21h, e domingo, às 20h. Direção: Murilo Grossi e William Ferreira. Texto: Sérgio Maggio. Com Adriana Lodi, Bidô Galvão, Carmem Moretzsohn e Catarina Accioly. Ingressos, R$ 15 e R$ 7,50 (meia, estendida para professores, maiores de 60 anos e correntistas do Banco do Brasil). Não recomendado para menores de 16 anos.
; Três perguntas // Murilo Grossi
Como foi dividir a direção? Dá mais segurança estrear com uma equipe tão integrada fora do palco?
Apesar de sempre ter dirigido atores para filmes, vídeos ou teatro, nunca havia dirigido um espetáculo. Quando as atrizes me chamaram, já tinham optado por dois diretores. Achei ótimo, por gostar de diálogo. Não saberia fazer sozinho. Formalmente, o William (Ferreira) ficou mais com a encenação e eu com a direção. Mas, isso se mistura. Claro que a estrutura de equipe favorece, já que, além de bem integrada e experiente, é formada por amigos com enorme admiração mútua.
Qual o acréscimo da montagem (ou diferencial) em relação ao texto original?
O belo texto do Maggio nos sugeriu uma série de atmosferas que estamos procurando na montagem, mas o diferencial maior é só no sentido de as falas se realizarem de maneira mais coloquial e menos literária, o que é absolutamente normal nesta situação. Ele nos deixou bem à vontade.
O que une e o que esfacela essas mulheres obrigadas a um convívio tão confinado?
Talvez a falta de opção, o beco sem saída e, de certa forma, um ambiente marginalizado socialmente traga à tona uma enorme necessidade de afeto que se dá através do conflito. Mas, vivências trágicas agregam os seres humanos.
; Trecho da peça
CHINA
(fala ao pé de ouvido de Minininha) ; O tempo foi cruel com Cabeluda. Chegou aqui e era uma princesa. A mulher mais linda que já passou pelo meu salão.
MINININHA
; Teve homem que quis tirar ela daqui pra casar.
CHINA
; Lembro, o jornalista.
MINININHA
; O que chamava a xana dela de barbudinho.
CHINA
(rindo) ; Ela é doida, nunca foi feita pro altar. Queria putaria em alto risco. Vou te contar um episódio que guardei todo esse tempo em segredo. Um dia, ela saiu daqui, na surdina, com homem que não conhecia. Você sabe a minha regra número um: menina minha só faz programa dentro do castelo. Cabeluda, desobediente, pegou o carro do sujeito, bem aqui na porta. Ele a levou pro apartamento. Sem ela saber de nada, tinham uns cinco homens esperando. Fizeram o miserê com a coitada. Depois, largaram, nua, surrada, devastada, no matagal. Fui buscá-la no hospital. Disposta a despachar de volta pra casa. Quando vi o quadro, me banhei de pena. Levei lá pra casa, ficou umas semanas amoada, de bicão no quarto, porque não deixei voltar ao castelo.
MINININHA
; Você e o seu coração mole...Caboclo Mamãe...
CHINA
; Perdoei, e ainda ajudei ela a dar a lição nos bandidos, uma meninada que andava repetindo na zona a mesma bagaceira com outras mulheres. Chamamos Cleidinha, uma mulata muito da bunduda lá do castelo de Zefão, e botamos de isca. O otário pegou e levou pro apartamento. Juntei uns sete cabras, invadimos e aí tocamos o terror. Cabeluda fez questão de ir e acertou um por um. Saímos de lá, e os homens resolveram fazer rodízio com os malditos.