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Diversão e Arte

Chef Bettina Orrico lança livro com cardápio inspirados em personalidades

Quando tinha 14 anos, Bettina Orrico costumava ficar horas sentada na mesa da cozinha enquanto folheava as revistas americanas da mãe. Imaginava-se perto da lareira, deitada em um lindo sofá xadrez com um vestido de tafetá e um belo pedaço de bolo de chocolate no prato, a única parte do sonho que conseguia transformar em realidade. Bastava traduzir e seguir a receita do doce. E foi assim que começou o sonho de uma das maiores cozinheiras do Brasil. Décadas depois, seria ela a inspirar milhares de brasileiras. Até hoje, inventa pratos e produz fotos em uma das maiores revistas femininas do país. A experiência de anos permitiu a Bettina lançar, nesta semana, o saboroso livro Os jantares que não dei (BEI Editora), no qual elabora jantares-homenagem para diferentes personalidades, entre artistas, chefs e profissionais liberais.

A famosa cozinheira nasceu e cresceu no coração de Salvador. Foi em um chalé na Avenida Sete de Setembro que ela aprendeu a cozinhar com a mãe e com a empregada da família, Maria Conceição, homenageada no livro com um cardápio de rolinho de beringela e pudim de maria-mole. ;Tenho lembranças deliciosas da minha infância. Meu pai era italiano e minha mãe, baiana. Os almoços de domingo eram sagrados. Eu vibrava com o nhoque que ela fazia;, conta.

Bettina também não se esquece de outro episódio que vivenciou na cozinha. No início da década de 1940, a família resolveu fazer uma reforma na casa e mandou tirar o fogão de lenha e instalar um elétrico. ;Aquele fogão foi um dos primeiros de Salvador;, diz. Uma funcionária americana foi à residência apenas para ensinar como o aparelho funcionava. E fez surgir do forno um bolo de caramelo maravilhoso, para fascínio da então adolescente. ;Eu guardei aquilo na mente. Até hoje, procuro o caderno de minha mãe para ver se eu acho a receita desse bolo. De qualquer maneira, se eu fizer essa receita, certamente não vai ter aquele gosto que eu senti quando era mocinha;, pensa.

Depois de ter feito a faculdade de belas artes, ela se mudou para São Paulo, onde estudou pintura e não parou mais de cozinhar. Passou três anos na Europa para fazer exposições e, quando voltou ao Brasil, recebeu um convite irrecusável. Em 1973, começou a produzir fotografias de pratos para revistas da editora Abril. ;Como eu tinha noção de composição de arte e sabia cozinhar, fui contratada para testar e arrumar os pratos;, recorda.

Em pouco tempo, Bettina assinava uma coluna e criava as próprias receitas. Algumas para o dia a dia, outras, verdadeiros banquetes. ;O meu mundo girou. Eu, que costumava olhar aquelas revistas, estava fazendo aquele mesmo trabalho. A pintura se tornou um hobby, até hoje eu pinto. Mas naquele momento eu me transformei em cozinheira, como eu sempre quis ser. Adoro fazer pesquisas, contar a história dos ingredientes e explicar a reação química das receitas;, afirma.

Bettina não é só cozinheira, mas inventora na cozinha. Uma massa de rocambole se transforma em rodelas com recheio de abóbora ou aperitivos fritos servidos com salmão defumado com cream cheese. A inspiração continua a ser a rica gastronomia brasileira e as revistas de culinária americanas, italianas, francesas e australianas. ;Tem que botar a cabeça para funcionar mesmo. Para criar, é preciso bagagem. É uma coisa muito rica poder passar todas as minhas experimentações para essas moças e rapazes que atualmente estão gostando de culinária;, aponta.

Banquetes
Durante anos, ela aprimorou a arte de montar um cardápio para os jantares que preparava. Foi justamente durante uma dessas preparações que surgiu a ideia de escrever o livro que ela sonhava em fazer. ;Estava tentando preparar uma carne e pensei : ;Se pra gente da minha terra eu faço essa confusão toda e não consigo acertar o cardápio, imagine se seu fosse fazer um jantar para o papa ou o dalai lama?;. Foi quando me deu um estalo;, conta, com o melhor sotaque baiano.

No mesmo dia, Bettina começou a anotar crônicas com esses convidados ilustres. Muitos, ela sequer conhecia. O primeiro registro foi feito em 1991, mas só dois anos atrás o projeto teve o investimento de uma editora e foi levado adiante. A premissa do trabalho de Bettina na revista permaneceu nas páginas do livro: pratos simples, brasileiros e bem caseiros. ;Escolhi receitas fáceis, coisas que uma cozinheira como eu possa fazer em casa para receber os amigos;, explica.

O cardápio foi escolhido de acordo com a personalidade e as lembranças que ela tinha de cada homenageado. Para o músico Zeca Baleiro, de quem é fã, Bettina pensou inicialmente em comidas típicas do Maranhão, estado onde o cantor nasceu, mas acabou escolhendo pratos com influência portuguesa para apresentá-lo às origens da gastronomia da região. Para Dorival Caymmi, não teve como fugir das delícias baianas. ;Para ele e para Oscar Niemeyer, escolhi pratos leves, por causa da idade;, explica. Bettina não sabe se um dia vai conseguir fazer alguns desses jantares, mas, se alguma dessas personalidades pedir, ela estará pronta. ;Vou ficar muito feliz se isso acontecer;, revela.

O segredo de um jantar de sucesso, segundo a especialista, é pensar sempre em quem você vai receber. Para a cozinheira, a celebração tem de ter entrada, primeiro prato, acompanhamento e sobremesa, que sempre vem em dobro: uma mais leve, com frutas, e outra com chocolate, para não ter erro. ;Os ingredientes também não podem se misturar. Se eu coloquei abóbora na entrada, não posso usar no primeiro prato ou na sobremesa. Estude as texturas para que elas combinem entre si. E analise as cores para não ficar um cardápio todo verde, por exemplo. Uma refeição precisa ser colorida, dar água na boca;, aconselha.

Mas, se Bettina tivesse de preparar um jantar para ela mesma, qual seria o cardápio? Antes de responder, ela pensa por alguns segundos, diz que é difícil escolher, afinal gosta de tudo. Depois de escolher o primeiro ingrediente, fica mais fácil e ela começa a dar a receita. ;Uma costela de tambaqui refogada no azeite com sal e pimenta do reino. Cozida bem devagar, para ficar macia. Por cima, umas folhinhas de coentro. Para acompanhar, farofa-baiana e uma salada de folhas com um molho que eu faço com suco de limão, mel, água, azeite e mostarda. De sobremesa, eu vou para as frutas: fatias de manga com uma bola de sorvete de gengibre. Eu pego um sorvete de creme e ralo um gengibre dentro, depois bato e volto a colocar para congelar. Nossa, eu ia ficar feliz com essa comidinha.;

Eu acho...
;Não tenho palavras para agradecer uma homenagem tão carinhosa de uma pessoa tão importante, que sem dúvida é um dos pilares do processo de renovação da gastronomia brasileira. Ela dirigiu seu trabalho a pessoas de todas as origens sociais na revista Claudia, e isso realmente é muito importante para a democratização de uma cozinha brasileira saudável em todas as mesas do país;
Laurent Suaudeau, chef francês responsável pelo cardápio do restaurante Oscar, do Brasília Palace Hotel


Pratos imaginados

Confira o cardápio preparado por Bettina Orrico para alguns de seus homenageados e aprenda as receitas de alguns pratos:
Jorge Baumann/Divulgação


Beatriz Segall (atriz)
Jantar: carpaccio de salmão com kinkans, batatas ao cr;me, filé na manteiga de alecrim, pavlova

Filé na manteiga de alecrim

Ingredientes
  • 1 xícara de manteiga
  • 1/4 xícara de alecrim
  • 1 peça de filé mignon limpa
  • Sal e pimenta-do-reino a gosto

Modo de fazer
Numa panela média, coloque a manteiga e o alecrim. Leve ao fogo, deixe derreter e começar a criar espuma. Retire do fogo e bata no liquidificador. Coloque o filé já temperado com sal e pimenta-do-reino numa assadeira. Banhe toda a carne com a manteiga derretida com alecrim. Leve ao forno quente a uma temperatura de 200;C, banhando de vez em quando, por 40 minutos ou o tempo necessário para a carne ficar ao seu gosto (ao ponto, malpassado ou bem-passado). Retire do forno e sirva numa travessa com o molho de manteiga que ficou na assadeira.

Rendimento: 4 porções

Chico Buarque (cantor e compositor)
Jantar: patê de fígado, trofie, bacalhau com broa de milho e bom-bocado

Bom-bocado

Ingredientes
  • 1/2 xícara (chá) de açúcar
  • 1/3 xícara (chá) de água
  • 1 colher (sopa) de manteiga
  • 1 ovo
  • 3 gemas
  • 1/4 xícara (chá) de queijo-do-reino (do tipo casca vermelha, vendido em lata) ralado

Modo de fazer
Em uma panela, misture o açúcar e a água. Ferva até alcançar o ponto de pasta (a calda ficará grossa e deslizará entre o polegar e indicador). Retire do fogo e junte a manteiga. Deixe esfriar. Misture o ovo e as gemas. Acrescente-os à calda juntamente com o queijo. Coloque a mistura em forminhas untadas com manteiga. Asse em banho-maria em forno pré-aquecido a 200; C até que, ao enfiar um palito na massa, ele saia limpo. Deixe esfriar antes de servir.

Rendimento: 5 porções

Dorival Caymmi (cantor e compositor)
Jantar: bolinhos de camarão, frigideira de siri, pirão de peixe, ensopado de peixe e cocada de forno

Bolinhos de camarão

Ingredientes
  • 250g de pão sem casca
  • Leite suficiente para umedecer bem o pão
  • 250g de camarões limpos
  • 2 colheres (sopa) de manteiga
  • 2 colheres (sopa) de cebola picada
  • 1 colher (sopa) de coentro
  • 1 colher (sopa) de salsinha picada
  • 3 ovos
  • Farinha de rosca para empanar
  • Óleo para fritar
  • Sal e pimenta-do-reino a gosto


Modo de fazer
Em uma tigela, misture o pão e o leite. O pão tem de ficar bem molhado, até se tornar uma pasta. Em uma frigideira em fogo baixo, frite os camarões na manteiga com a cebola, o coentro, o sal e a pimenta-do-reino. Quando os camarões estiverem cozidos, retire da frigideira e deixe esfriar. Em seguida, bata os camarões no processador, juntamente com a massa de pão, a salsinha e dois ovos batidos. Transfira essa mistura para uma panela e leve ao fogo baixo para cozinhar até engrossar, mas mantendo sua forma. Verifique o sal. Retire do fogo e reserve. Assim que esfriar um pouco, faça bolinhas de tamanho médio. Passe-os na farinha de rosca, no ovo restante ligeiramente batido e novamente na farinha de rosca. Deixe repousar por 1 hora. Frite em uma panela funda, em óleo quente, até dourar. Escorra sobre papel-toalha. Sirva imediatamente com salada de folhas.

Rendimento: 15 bolinhos

Outros homenageados

Oscar Niemeyer (arquiteto)
Jantar: salada de lagostim e abacaxi, terrina de legumes, filés de frango com amêndoas e bananas douradas com creme

Laurent Suaudeau (chef)
Jantar: manjubinhas fritas, Maria Izabel, fritada do Laurent, tainha na telha, filhote com crosta de farinha d;água, matambre enrolado, muxá Laurent, pão de ló de castanha-do-pará e salada de manga, lichia, kiwi e mexirica

João Ubaldo Ribeiro (escritor)
Jantar: lulas refogadas, frango perfumado, moqueca de arraia, Himel und Erde, farofa de dendê e papo de anjo

Zeca Baleiro (cantor e compositor)

Jantar: salada de feijão tricolor, pataniscas, bacalhau espiritual, rolo de merengue macio de morango