A famosa cozinheira nasceu e cresceu no coração de Salvador. Foi em um chalé na Avenida Sete de Setembro que ela aprendeu a cozinhar com a mãe e com a empregada da família, Maria Conceição, homenageada no livro com um cardápio de rolinho de beringela e pudim de maria-mole. ;Tenho lembranças deliciosas da minha infância. Meu pai era italiano e minha mãe, baiana. Os almoços de domingo eram sagrados. Eu vibrava com o nhoque que ela fazia;, conta.
Bettina também não se esquece de outro episódio que vivenciou na cozinha. No início da década de 1940, a família resolveu fazer uma reforma na casa e mandou tirar o fogão de lenha e instalar um elétrico. ;Aquele fogão foi um dos primeiros de Salvador;, diz. Uma funcionária americana foi à residência apenas para ensinar como o aparelho funcionava. E fez surgir do forno um bolo de caramelo maravilhoso, para fascínio da então adolescente. ;Eu guardei aquilo na mente. Até hoje, procuro o caderno de minha mãe para ver se eu acho a receita desse bolo. De qualquer maneira, se eu fizer essa receita, certamente não vai ter aquele gosto que eu senti quando era mocinha;, pensa.
Depois de ter feito a faculdade de belas artes, ela se mudou para São Paulo, onde estudou pintura e não parou mais de cozinhar. Passou três anos na Europa para fazer exposições e, quando voltou ao Brasil, recebeu um convite irrecusável. Em 1973, começou a produzir fotografias de pratos para revistas da editora Abril. ;Como eu tinha noção de composição de arte e sabia cozinhar, fui contratada para testar e arrumar os pratos;, recorda.
Em pouco tempo, Bettina assinava uma coluna e criava as próprias receitas. Algumas para o dia a dia, outras, verdadeiros banquetes. ;O meu mundo girou. Eu, que costumava olhar aquelas revistas, estava fazendo aquele mesmo trabalho. A pintura se tornou um hobby, até hoje eu pinto. Mas naquele momento eu me transformei em cozinheira, como eu sempre quis ser. Adoro fazer pesquisas, contar a história dos ingredientes e explicar a reação química das receitas;, afirma.
Bettina não é só cozinheira, mas inventora na cozinha. Uma massa de rocambole se transforma em rodelas com recheio de abóbora ou aperitivos fritos servidos com salmão defumado com cream cheese. A inspiração continua a ser a rica gastronomia brasileira e as revistas de culinária americanas, italianas, francesas e australianas. ;Tem que botar a cabeça para funcionar mesmo. Para criar, é preciso bagagem. É uma coisa muito rica poder passar todas as minhas experimentações para essas moças e rapazes que atualmente estão gostando de culinária;, aponta.
Banquetes
Durante anos, ela aprimorou a arte de montar um cardápio para os jantares que preparava. Foi justamente durante uma dessas preparações que surgiu a ideia de escrever o livro que ela sonhava em fazer. ;Estava tentando preparar uma carne e pensei : ;Se pra gente da minha terra eu faço essa confusão toda e não consigo acertar o cardápio, imagine se seu fosse fazer um jantar para o papa ou o dalai lama?;. Foi quando me deu um estalo;, conta, com o melhor sotaque baiano.
No mesmo dia, Bettina começou a anotar crônicas com esses convidados ilustres. Muitos, ela sequer conhecia. O primeiro registro foi feito em 1991, mas só dois anos atrás o projeto teve o investimento de uma editora e foi levado adiante. A premissa do trabalho de Bettina na revista permaneceu nas páginas do livro: pratos simples, brasileiros e bem caseiros. ;Escolhi receitas fáceis, coisas que uma cozinheira como eu possa fazer em casa para receber os amigos;, explica.
O cardápio foi escolhido de acordo com a personalidade e as lembranças que ela tinha de cada homenageado. Para o músico Zeca Baleiro, de quem é fã, Bettina pensou inicialmente em comidas típicas do Maranhão, estado onde o cantor nasceu, mas acabou escolhendo pratos com influência portuguesa para apresentá-lo às origens da gastronomia da região. Para Dorival Caymmi, não teve como fugir das delícias baianas. ;Para ele e para Oscar Niemeyer, escolhi pratos leves, por causa da idade;, explica. Bettina não sabe se um dia vai conseguir fazer alguns desses jantares, mas, se alguma dessas personalidades pedir, ela estará pronta. ;Vou ficar muito feliz se isso acontecer;, revela.
O segredo de um jantar de sucesso, segundo a especialista, é pensar sempre em quem você vai receber. Para a cozinheira, a celebração tem de ter entrada, primeiro prato, acompanhamento e sobremesa, que sempre vem em dobro: uma mais leve, com frutas, e outra com chocolate, para não ter erro. ;Os ingredientes também não podem se misturar. Se eu coloquei abóbora na entrada, não posso usar no primeiro prato ou na sobremesa. Estude as texturas para que elas combinem entre si. E analise as cores para não ficar um cardápio todo verde, por exemplo. Uma refeição precisa ser colorida, dar água na boca;, aconselha.
Mas, se Bettina tivesse de preparar um jantar para ela mesma, qual seria o cardápio? Antes de responder, ela pensa por alguns segundos, diz que é difícil escolher, afinal gosta de tudo. Depois de escolher o primeiro ingrediente, fica mais fácil e ela começa a dar a receita. ;Uma costela de tambaqui refogada no azeite com sal e pimenta do reino. Cozida bem devagar, para ficar macia. Por cima, umas folhinhas de coentro. Para acompanhar, farofa-baiana e uma salada de folhas com um molho que eu faço com suco de limão, mel, água, azeite e mostarda. De sobremesa, eu vou para as frutas: fatias de manga com uma bola de sorvete de gengibre. Eu pego um sorvete de creme e ralo um gengibre dentro, depois bato e volto a colocar para congelar. Nossa, eu ia ficar feliz com essa comidinha.;
Eu acho...
;Não tenho palavras para agradecer uma homenagem tão carinhosa de uma pessoa tão importante, que sem dúvida é um dos pilares do processo de renovação da gastronomia brasileira. Ela dirigiu seu trabalho a pessoas de todas as origens sociais na revista Claudia, e isso realmente é muito importante para a democratização de uma cozinha brasileira saudável em todas as mesas do país;
Laurent Suaudeau, chef francês responsável pelo cardápio do restaurante Oscar, do Brasília Palace Hotel
Pratos imaginados
Confira o cardápio preparado por Bettina Orrico para alguns de seus homenageados e aprenda as receitas de alguns pratos:
Jorge Baumann/Divulgação
Beatriz Segall (atriz)
Jantar: carpaccio de salmão com kinkans, batatas ao cr;me, filé na manteiga de alecrim, pavlova
Filé na manteiga de alecrim
Ingredientes
- 1 xícara de manteiga
- 1/4 xícara de alecrim
- 1 peça de filé mignon limpa
- Sal e pimenta-do-reino a gosto
Modo de fazer
Numa panela média, coloque a manteiga e o alecrim. Leve ao fogo, deixe derreter e começar a criar espuma. Retire do fogo e bata no liquidificador. Coloque o filé já temperado com sal e pimenta-do-reino numa assadeira. Banhe toda a carne com a manteiga derretida com alecrim. Leve ao forno quente a uma temperatura de 200;C, banhando de vez em quando, por 40 minutos ou o tempo necessário para a carne ficar ao seu gosto (ao ponto, malpassado ou bem-passado). Retire do forno e sirva numa travessa com o molho de manteiga que ficou na assadeira.
Rendimento: 4 porções
Chico Buarque (cantor e compositor)
Jantar: patê de fígado, trofie, bacalhau com broa de milho e bom-bocado
Bom-bocado
Ingredientes
- 1/2 xícara (chá) de açúcar
- 1/3 xícara (chá) de água
- 1 colher (sopa) de manteiga
- 1 ovo
- 3 gemas
- 1/4 xícara (chá) de queijo-do-reino (do tipo casca vermelha, vendido em lata) ralado
Modo de fazer
Em uma panela, misture o açúcar e a água. Ferva até alcançar o ponto de pasta (a calda ficará grossa e deslizará entre o polegar e indicador). Retire do fogo e junte a manteiga. Deixe esfriar. Misture o ovo e as gemas. Acrescente-os à calda juntamente com o queijo. Coloque a mistura em forminhas untadas com manteiga. Asse em banho-maria em forno pré-aquecido a 200; C até que, ao enfiar um palito na massa, ele saia limpo. Deixe esfriar antes de servir.
Rendimento: 5 porções
Dorival Caymmi (cantor e compositor)
Jantar: bolinhos de camarão, frigideira de siri, pirão de peixe, ensopado de peixe e cocada de forno
Bolinhos de camarão
Ingredientes
- 250g de pão sem casca
- Leite suficiente para umedecer bem o pão
- 250g de camarões limpos
- 2 colheres (sopa) de manteiga
- 2 colheres (sopa) de cebola picada
- 1 colher (sopa) de coentro
- 1 colher (sopa) de salsinha picada
- 3 ovos
- Farinha de rosca para empanar
- Óleo para fritar
- Sal e pimenta-do-reino a gosto
Modo de fazer
Em uma tigela, misture o pão e o leite. O pão tem de ficar bem molhado, até se tornar uma pasta. Em uma frigideira em fogo baixo, frite os camarões na manteiga com a cebola, o coentro, o sal e a pimenta-do-reino. Quando os camarões estiverem cozidos, retire da frigideira e deixe esfriar. Em seguida, bata os camarões no processador, juntamente com a massa de pão, a salsinha e dois ovos batidos. Transfira essa mistura para uma panela e leve ao fogo baixo para cozinhar até engrossar, mas mantendo sua forma. Verifique o sal. Retire do fogo e reserve. Assim que esfriar um pouco, faça bolinhas de tamanho médio. Passe-os na farinha de rosca, no ovo restante ligeiramente batido e novamente na farinha de rosca. Deixe repousar por 1 hora. Frite em uma panela funda, em óleo quente, até dourar. Escorra sobre papel-toalha. Sirva imediatamente com salada de folhas.
Rendimento: 15 bolinhos
Outros homenageados
Oscar Niemeyer (arquiteto)
Jantar: salada de lagostim e abacaxi, terrina de legumes, filés de frango com amêndoas e bananas douradas com creme
Laurent Suaudeau (chef)
Jantar: manjubinhas fritas, Maria Izabel, fritada do Laurent, tainha na telha, filhote com crosta de farinha d;água, matambre enrolado, muxá Laurent, pão de ló de castanha-do-pará e salada de manga, lichia, kiwi e mexirica
João Ubaldo Ribeiro (escritor)
Jantar: lulas refogadas, frango perfumado, moqueca de arraia, Himel und Erde, farofa de dendê e papo de anjo
Zeca Baleiro (cantor e compositor)
Jantar: salada de feijão tricolor, pataniscas, bacalhau espiritual, rolo de merengue macio de morango