postado em 18/11/2009 08:09
A cena é impagável. João Gilberto toca a campainha de um apartamento no Rio de Janeiro. Do outro lado da porta, Dadi, integrante daquele que seria um dos grandes fenômenos da MPB, o grupo Os novos baianos, atenta pelo olho mágico quem é. Ao ver um homem de terno preto, treme, cochichando em seguida aos amigos: "Ih, é a polícia" Mal-entendido desfeito, o episódio, desenhado com toques de folclore, aconteceu de verdade nos anos 1970 e é uma das várias histórias irreverentes pinçadas do documentário Filhos de João, Admirável mundo novo baiano, longa do baiano Henrique Dantas que abre, hoje, a 42ª edição da mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
"Passei 11 anos gastando minha expectativa trabalhando no filme, então vou deixá-la um pouco quieta. Lógico que quando a gente chega num festival como o de Brasília, ela (a expectativa) ganha uma força extra. Mas é uma energia, que não gosto muito de lidar, não. Para mim, já é um prêmio estar em Brasília", comenta o diretor, que gosta de classificar o seu projeto, orçado em R$ 500 mil, como um "filme de guerrilha". "Quero que as pessoas gostem, foi para isso que ele foi feito. É um trabalho em que passa um pouco da utopia das coisas que acredito. O cinema tem essa magia de poder reintroduzir as discussões utópicas", emenda.
Artista plástico que, assim como o conterrâneo Gilberto Gil, resolveu encarar o curso de administração de empresas, Henrique Dantas conta que teve a ideia para o projeto quando assistiu a uma entrevista, na tevê local baiana, com Paulinho Boca de Cantor. "Isso foi há mais de 10 anos, quando eles estavam comemorando 30 anos de carreira. Agora são 40", brinca. "Como tinha uma proximidade com o (Luiz) Galvão, que era primo da mãe de uma namorada da época, uma pessoa que me atraía por sua loucura, encarei o desafio de realizar um filme sobre os Novos Baianos", conta.
Durante o processo de pesquisa, o diretor viu que tinha um outro filme nas mãos à medida que, com os depoimentos, viu crescer a figura do metódico João Gilberto, um dos principais nomes da bossa nova. "Engraçado que até então não tinha a dimensão da importância dele, algo que ia além da bossa nova, um movimento abrangente, mas curto. Entendi que a música brasileira se dividia em antes e depois de JG, que era assim uma espécie de 'Cristo' comportamental. Vi que todos eram filhos de João, os Novos Baianos, a Tropicália", argumenta Dantas, que, claro, tentou falar do autor de Bim bom e Lobo bobo.
Tom Zé
Depois de 10 dias no Rio de Janeiro descobriu que seria mais fácil falar com Deus. "Cheguei a propor ao produtor Octávio Teixeira que, se fosse o caso, faríamos a entrevista às 3h da manhã por telefone, mas ele me tranquilizou e disse que João Gilberto tinha lhe respondido em italiano que daria a entrevista. Fiquei louco, mas não rolou", revela Henrique, entre gargalhadas. "O filme tem muito disso. Não tem João Gilberto, mas tem os filhos de João Gilberto, que é o cara que aparece no palco, pronto. Ele não aparece no longa como não aparece na vida", pondera o diretor, que costura o documentário com depoimentos de gente como Orlando Senna, Rogério Duarte e Tom Zé, segundo ele, a grande estrela do filme. "Realizar este projeto me deu alguns direitos fantásticos na minha vida como, por exemplo, entrevistar o Tom Zé. Ele está muito bem. Talvez melhor do que nos filmes que falam sobre ele. O material bruto da entrevista dá para fazer um outro filme", destaca.
Pontuado por temáticas diferentes, os dois curtas-metragens da noite, o carioca Homem-bomba, de Tarcísio Lara Puiati, e Amigos bizarros do Ricardinho, do gaúcho Augusto Canani, têm em comum o reencontro. Os dois diretores voltam pela segunda vez a um dos eventos cinematográficos mais importante do país. "É uma expectativa enorme, ainda mais porque na primeira vez que entrei no Cine Brasília, foi como participante da mostra paralela, que acontecia em outra sala", recorda o gaúcho Lara Puiati, radicado há 8 anos na Cidade Maravilhosa. "O filme tem temática social forte e conta no elenco com duas crianças do grupo Nós do Morro, do Morro do Vidigal. Será uma emoção grande para todos", diz. Com um pé na fantasia, a comédia dramática Amigos bizarros do Ricardinho, narra o complicado e sufocante mundo corporativo a partir das histórias insólitas do personagem-título. "É difícil falar sobre o tema do filme, mas basicamente é uma história que fala sobre opressão, só que dentro de uma comédia melancólica", resume Canani.
Aprovação
Um dos destaques da edição de 2007 do projeto Teste de Audiência, o filme arrebatou a simpatia do público e de especialistas da área quando exibido no Teatro da Caixa em setembro daquele ano. A média de aprovação foi de 97,5 pontos. "Não resta dúvida de que o projeto é uma ferramenta séria em favor do cinema brasileiro", elogia o diretor, que realizou o filme com o orçamento de R$ 500 mil. "Fiz o filme com o que eu tinha. Peguei câmera emprestada de várias pessoas, tem todas as marcas de câmera que você imaginar. É um filme da era digital", brinca.
42º FESTIVAL DE BRASíLIA DO CINEMA BRASILEIRO
Hoje, a partir das 20h30, no Cine Brasília, com a exibição dos filmes da primeira noite da mostra competitiva. Reprise às 23h30. Ingressos: R$ 6 e R$ 3 (meia). Não recomendado para menores de 16 anos.
Na disputa
Mostra Competitiva 35mm
Homem-bomba, de Tarcísio Lara Puiati, 13min, RJ
Amigos Bizarros do Ricardinho, de Augusto Canani, 20min, RS
Filhos de João, admirável mundo novo baiano, de Henrique Dantas, 75min, BA