Wilson Simonal morreu duas vezes. Em 1971, depois de ganhar a fama de dedo-duro e ser linchado pela opinião pública - ao ponto de virar personagem de charges cruéis de O Pasquim ("Como todos sabem, o dedo de Simonal é hoje muito mais famoso do que sua voz", dizia o texto que acompanhava a imagem da mão negra com o dedo indicador esticado) - e, de fato, em 25 de junho de 2000, em decorrência de doença hepática (provocada pelos anos de alcoolismo). O ostracismo, no entanto, durou quase quatro décadas. Só teve fim há seis meses, com a estreia de Simonal - Você não sabe o duro que dei, o imperdÃvel documentário de Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal sobre a ascensão e queda do rei do suingue. Com o filme, que teve 70 mil espectadores nos dois primeiros meses em cartaz e agora é lançado em DVD (com cenas e depoimentos inéditos nos extras), começou a "simonalmania". Depois de duas novas coletâneas - uma com a trilha do documentário, a outra (Um sorriso pra você) com raridades, gravações que ele fez para a Phillips nos anos 1970 -, chegaram à s lojas a biografia "Nem vem que não tem" - A vida e o veneno de Wilson Simonal, escrita por Ricardo Alexandre, e o CD e DVD O baile do Simonal, com 20 artistas interpretando músicas que fizeram sucesso na voz dele. A EMI também está mandando de volta à s prateleiras a caixa Wilson Simonal na Odeon (1961-1971), lançada em 2004 com nove discos, e ainda prepara o CD México e um DVD com o show que ele fez com Sarah Vaughan. Filhos do cantor, Wilson Simoninha e Max de Castro cuidaram da produção da caixa e de O baile do Simonal (que deve ganhar turnê a partir de fevereiro). No primeiro caso, recuperaram raridades e gravações inéditas. No segundo, assumiram a direção musical do tributo gravado em 11 de agosto, no Vivo Rio, e mostraram que a obra do pai, relida por intérpretes de diferentes praias e gerações - entre eles, Caetano Veloso (Remelexo), Orquestra Imperial (Terezinha), Ed Motta (Lobo bobo), Marcelo D2 (Nem vem que não tem), Mart'nália (Mamãe passou açúcar em mim), Frejat (Vesti azul), Os Paralamas do Sucesso (Mustang cor de sangue) e Samuel Rosa (Carango) - está muito acima de qualquer polêmica. "O grande lance do projeto é mostrar que uma música como Não vem que não tem, feita 45 anos atrás, podia ser, tranquilamente, do repertório do D2. São canções que ainda têm frescor", comenta Max. "Quando começamos esse trabalho, vimos que o que melhor representaria Simonal seria a diversidade. Ele sempre reclamou do preconceito, não seria a gente que faria isso agora. Então chamamos o pessoal do pagode, do samba, da MPB, do rock, artistas de outras gerações, até para fugir da coisa saudosista. QuerÃamos mostrar a evolução da obra." O showman Depois de quase 40 anos de esquecimento, o Brasil enfim redescobre o cantor excepcional, um dos mais populares do paÃs (ao lado de Roberto Carlos) na virada da década de 1960 para a de 1970. Carismático, brincalhão, Simonal, o homem que vivia cantando que a mãe havia passado açúcar nele, era um verdadeiro showman, capaz de reger um coro de 30 mil vozes no Maracanãzinho, ali na maciota, na "pilantragem" ("alegria, alegria"), como mostra o filme. Simoninha e Max sabem o duro que Claudio Manoel, Calvito Leal e Micael Langer deram para fazer esse documentário. "Era uma história que muita gente não queria contar. E tinha que contar, sim, porque o Brasil perdeu um artista importante, que acabou virando sÃmbolo de uma situação que era muito maior do que ele", diz Simoninha. Os diretores, enfim, contaram. E o fizeram sem julgar nem buscar a redenção do artista, que foi um dos maiores Ãdolos da música brasileira e pagou um preço alto, altÃssimo, pela arrogância, pela "alienação" (num tempo de esquerdas intolerantes) e por um episódio truculento. Sim, o documentário traz o depoimento de Raphael Viviani, o contador que Simonal demitiu quando perdeu muito dinheiro e achou que estava sendo roubado. Viviani entrou com um processo trabalhista, o cantor ficou com ódio e procurou dois policiais para dar uma surra no ex-funcionário. Detalhe: um deles era agente do Departamento de Ordem PolÃtica e Social. Viviani foi torturado na delegacia do Dops. Ao sair de lá, deu queixa contra Simonal, que, para se safar, disse ter "contato com os homens". Uma estupidez que lhe trouxe a fama de delator e o baniu da televisão, das gravadoras e dos palcos. Para Max, o filme e a biografia põem um ponto final nas questões pessoais. "Depois de tantos anos, ele volta a ser referência na música brasileira. Em vez de ficar discutindo se era inocente ou culpado, hoje podemos ouvir Simonal, o que é bem mais importante", afirma. "A gente sempre teve serenidade para lidar com essa dor, sem revanchismo. Que bom que estão redescobrindo Simonal, isso é muito maior do que qualquer alegria pessoal", emenda Simoninha. Não conhece ainda? Leia o livro, veja o filme, ouça o disco, assista ao show. Vem que tem. » Entrevista - Ricardo Alexandre "A carreira de Simonal é simbólica e única" » Carlos Marcelo Jorge Ben Jor, Tim Maia, Gerson King Combo, Banda Black Rio A black music brasileira, depois de anos de ostracismo, ganhou reconhecimento da crÃtica e do público na metade dos anos 1990. O revival trouxe também à tona o nome e a música de Wilson Simonal, que passou a ser cultuado em bailes e festas. Foi naquele momento que surgiu no repórter e crÃtico musical Ricardo Alexandre o interesse pela carreira errática de Simonal. Em 2003, o jornalista foi convidado por Simoninha e Max de Castro para produzir a parte editorial da caixa Wilson Simonal na Odeon. A partir da pesquisa e das entrevistas realizadas, mais a chance de assistir a uma das primeiras montagens do documentário Ninguém sabe o duro que dei, o autor do obrigatório Dias de luta - O rock e o Brasil dos anos 80 decidiu investir em livro sobre o intérprete de Sá Marina e PaÃs Tropical. "Percebi que o nome do Simonal voltaria ao primeiro time da música brasileira", lembra o jornalista, nascido em 1974, atual diretor de redação da revista Época São Paulo. O resultado das pesquisas é "Nem vem que não tem" - A vida e o veneno de Wilson Simonal, rigorosa e reveladora biografia de Wilson Simonal de Castro. A seguir, Alexandre comenta seu trabalho, as polêmicas sobre o envolvimento de Simonal com a ditadura militar e a redescoberta da obra que o autor considera "o maior cantor da história do Brasil". Qual foi a parte da vida e/ou da carreira do Simonal mais difÃcil de ser reconstituÃda? A infância, porque há poucas testemunhas vivas e o próprio Simonal falava pouco sobre ela. Quais foram os fatores decisivos para a cristalização da imagem de Simonal como "prestador de serviços" da ditadura militar? Não gostaria de ser leviano apontando um ou dois (ou quatro ou cinco) motivos. o que cristalizou a imagem do Simonal como colaborador do regime foram dezenas de motivos pessoais e profissionais, uma série de coincidências infelizes, vários passos em falso que ele próprio empreendeu, tudo regado pela intolerância tÃpica de tempos sombrios como aqueles, com pitadas de racismo, inveja e adulação de um lado e prepotência, pernosticismo e falta de preparo de outro. No fim do livro, você cita o recente revival do Simonal e o fato de ter havido, ainda que involuntariamente, uma tentativa de reposicioná-lo historicamente. Como você analisa essa tentativa, que provocou um novo debate público na mÃdia e entre formadores de opinião? Acho que é uma tendência mundial. Lembro da dificuldade que eu tinha nos anos 80 para colocar as mãos em discos dos anos 60 e 70 (fossem Bowie, Novos Baianos, Dylan ou Jorge Ben). Com o surgimento do CD, começou também uma cultura de redescoberta dos "clássicos" - uma tendência da qual a revista Mojo é um representante muito exemplar. A partir dos anos 90, tornou-se muito lucrativo e muito interessante todo esse mercado de relançamentos, shows-tributo e coisas do tipo. Acho que esse reposicionamento do Simonal tem a ver com isso, mas é dividido em três fases: a fase da redescoberta de sua música, pelos formadores de opinião e "cognoscente" do pop brasileiro (entre 1995 e 2000), a fase posterior à sua morte, em que a história dele começou a ser novamente discutida (2000-2008) e a fase em que toda a história foi esclarecida e largamente debatida, a que estamos vivendo. Essa terceira fase detonou uma redescoberta mais "franca" de seu trabalho. Você considera única a trajetória de Simonal na música brasileira? Por quê? Porque ela é simbólica como nenhuma outra conseguiu ser. Tanto no auge de seu sucesso quanto na história de sua decadência, ele reuniu caracterÃsticas e sintetizou elementos tão dÃspares que, embora não fossem "únicos" em si, foram todos reunidos em um único personagem.