Teatro de Arena lotado. Plínio Marcos tinha acabado de peitar um censor. Chamou ele de pierrô e pediu que trouxesse papel timbrado, carimbado, assinado com firma reconhecida e o escambau a quatro. O homem, pau-mandado da ditadura militar, ficou irado. Para piorar, tomou um empurrão bem no meio do peito e foi, igual a menino que apanha na rua, choramigar vingança aos mais fortes. O sujeito magoado veio bem na hora do espetáculo acompanhado de camburão. Queria apontar o ;valente; que desacatou uma autoridade. Os policiais cercaram o dramaturgo. Nessa hora, Maria Bethânia pediu para acender as luzes do teatro e anunciou:
; Estão prendendo Plínio Marcos.
O ator, palhaço e dramaturgo foi colocado numa viatura que nem bandido, enquanto, na saída do teatro, artistas e espectadores gritavam ;solta ele.. solta ele;;
; De repente, silêncio. Ela chegou. A própria. Cacilda Becker, em todo o esplendor de primeira-dama do teatro. Com sua autoridade, convenceu os policiais a não prenderem Plínio. Prometeu estar com ele, na manhã seguinte, no Departamento de Diversões Públicas para esclarecer o fato. Assim se fez, conta o ator, diretor e dramaturgo Oswaldo Mendes, autor da biografia Bendito maldito (Leya), que acaba de chegar às livrarias, em momento que é rememorada uma década da morte do dramaturgo.
Numa reconstituição pessoal e histórica, o livro é muito mais do que um importante registro memorial sobre a obra de um dos mais importantes dramaturgos brasileiros do século 20. Funciona também como um tratado para implodir de vez estigmas que atravessam os tempos e cerceiam a obra de Plínio Marcos. Sobretudo, o rótulo de teatro marginal. Tudo contado não com um argumento veemente para aplacar a verdade. Mas costurado com fragmentos de memórias, divididos em atos e cenas como se a vida de Plínio Marcos fosse um grande espetáculo que se passa em quase 500 páginas, povoado de personagens que ajudaram a construir o teatro brasileiro.
; Compor a biografia de Plínio Marcos com a estrutura de uma peça de teatro, em três atos, não é só uma escolha formal. Ela permite acompanhar, dramaticamente, a evolução do personagem, enquanto outras vidas cruzam seu caminho, aponta Oswaldo Mendes.
Cacilda Becker e Maria Bethânia foram só duas entre centenas que seguem seis décadas de vida intensa, definida como um cometa pela crítica Ilka Marinho Zanotto, no prefácio da obra. Uma delas é Patrícia Galvâo, Pagu, musa modernista, amante do teatro. Ela leu Barrela, a primeira peça de jovem ator de 22 anos, e fez a primeira crítica oral, espalhada aos ventos e com entusiasmo.
; Gênio, gênio! Os diálogos são tão fortes quanto os de Nelson Rodrigues, anunciava Pagu para um Plínio Marcos, que desconhecia a existência do autor de Vestido de noiva.
; Patrícia falou que o diálogo dessa peça é violentíssimo. Era só palavrão, eu não conhecia palavras, só conhecia palavrão, comentou Plínio Marcos, grande responsável por humanizar personagens à margem da sociedade.
; O meu Cristo é o Cristo das prostitutas, minorias, marginalizados, negros, dos que têm fome.
BENDITO MALDITO
Biografia de Plínio Marcos. De Oswaldo Mendes. Editora Leya. 499 páginas.
Vida em três atos:
ATO 1
De 1935 a 1966 ; Do nascimento do menino à estreia de Dois perdidos numa noite suja, que consagra o dramaturgo
Palhaço Frajola
"Na época, lançaram uma revista em quadrinhos chamada Mindinho, com o gato Frajola que queria pegar o passarinho Piu-piu. Um dia, eu estava tentando pegar um passarinho e caí do telhado. Meu pai me chamou de gato Frajola e o apelido pegou. Até que saiu o gato e ficou só o Frajola."
Patrícia Galvão
"Nunca deixe a Patrícia ser minha madrinha. Nunca fui pedir a bênção. Não respeito essa coisa de mestre"
Dramaturgo
"Você só é respeitável e digno como autor de teatro, se souber que tem que servir ao ator"
FAMA
"Daí que fiquei importante, com direito de frequentar festa de grâ-fino e de mijar no aquário"
ATO II
De 1967 a 1985 ; Começa com a proibição de Navalha na carne e culmina com enfarte do autor. Época maculada pela censura e perseguição política.
"Sou em mim essa proibição mais do que todas as das outras peças. Sei lá por quê. Talvez porque Barrela seja a primeira peça. Doeu. Mas não me desanimou"
"A cultura e a inteligência brasileira foram massacradas em seu templo"
"Eu senti um vazio, porque nem a Igreja nem os partidos se interessavam por alguém como eu"
"Eu tinha uma coragem pessoal que a maioria das pessoas não tinha. E não dava espaço para ninguém me invadir"
ATO III
De 1985 a 1999. Com dificuldades de saúde, Plínio segue engajando-se na luta pela redemocratização até a morte, aos 64 anos, em 19 de novembro
Consciência
"Quando falam que eu fui perseguido, eu digo: Eu não. Eu é que fiz por merecer"
Misticismo
"Dispensa-me dos rótulos, por favor, e eu te explico que a busca da religiosidade nada tem a ver com seitas"
Plenitude
"Já não ansiava mais pelas glórias frágeis do sucesso transitório. Sabia que não podia mais voltar"