Diversão e Arte

Dispensado pela crítica como "autor meramente comercial", Raymond Chandler teve quase todos seus romances filmados e tornou-se referência na literatura e no cinema

postado em 25/12/2009 08:35
Bernardo Scartezini - Especial para o Correio Raymond Chandler e Dashiel Hammett são considerados os criadores do romance noir, o romance policial contemporâneo. A partir de autores como Edgar Allan Poe e emprestando um tanto da mitologia americana em torno do gangsterismo (a Lei Seca dos anos 1920 e 1930, o cinema que a retratou nos anos 1930 etc.), Hammett e Chandler desenvolveram em paralelo os paradigmas do policial noir - primeiro na literatura, mas logo depois também no cinema, duas mídias que hoje em dia se confundem nessa história. Chandler lançou o primeiro romance em 1939 e nunca mais abandonou seu protagonista, Philip MarloweHammet publicou O falcão maltês, seu terceiro romance, em 1930, trazendo o detetive Sam Spade e antecipando os cenários urbanos que a literatura policial adquiriria: detetives particulares, gângster, policiais corruptos, redes de extorsões, personagens de interesses diversos. Com o prestígio editorial, Hammett pôde fundar a revista Black Mask e trazer para ela autores de características semelhantes. É quando entra Raymond Chandler na jogada, tornando-se um dos habituais colaboradores do periódico. Sam Spade se revelara o anti-herói ideal para o cinema e uma primeira filmagem de O falcão maltês foi realizada já em 1931, com Ricardo Cortez no papel de Spade. Um filme que simplesmente foi banido da memória do cinema diante da espetacular refilmagem que John Huston conduziria exatos 10 anos depois, com Humphrey Bogart e Mary Astor. O falcão maltês, o filme de 1941, arrombou Hollywood para os escritores policiais. E Raymond Chandler logo se serviria da oportunidade. Seu romance de estreia, O sono eterno, foi filmado por Howard Hawks em 1946. Bogart em cena novamente, emprestando sua gabardine para Philip Marlowe. Lauren Bacall fazendo a melíflua Vivian Rutledge, uma ricaça de vida desregrada, acossada por chantagistas. A história de Chandler foi adaptada para o cinema num roteiro coassinado por Leigh Brackett e William Faulkner. [SAIBAMAIS]Evidente ironia. Faulkner, que trabalhava em Hollywood para faturar uns cobres, já tinha escrito algumas de suas obras-primas. Chandler, por sua vez, assim como Hammett, era dispensado pela crítica literária num dar de ombros, considerados autores meramente comerciais. Literatura pulp como se dizia, pulp fiction, impressa em edições baratinhas de papel jornal e que entretinha apenas os leitores mais toscos com histórias que apelavam a seus baixos instintos (sangue, violência, sedução). Com o tempo, o cenário virou e esses camaradas se mostraram influentes e decisivos para outros autores, contemporâneos seus e posteriores ... Ross MacDonald, Elmore James, Edward Bunker, Dennis Lehane... E mesmo os autores que se aproximam da pulp de maneira irônica, de Charles Bukowski (em Pulp) ao brasileiro Mário Bortolotto (em Mamãe não voltou do supermercado), deixam evidente a cortesia com que tratam Chandler & Hammett. Se suas histórias hoje podem soar crivadas de clichês, cacoetes e lugares-comuns, não se deixe enganar e pense duas vezes: o que hoje soa familiar e confortável teve que um dia ser inventado. Daí a importância de Philip Marlowe. Um brandy, um bourbon Philip Marlowe é um sujeito de temperamento tranquilo, leitor de poesia e apreciador de belas damas, belos tragos. Seu emprego como detetive particular, infelizmente, exige dele mais horas de trabalho do que gostaria e faz com que, por exemplo, tenha que ficar dentro do carro, de tocaia, bebericando uísque, sem poder esticar as pernas na calçada. Também faz com que se envolva com mais picaretas do que gostaria: da defensoria pública à delegacia de polícia. Às vezes tem que se meter em lutas corporais e sabe-se que já escapou de tiroteios. Mas passa a maior parte do tempo seguindo pistas desencontradas e matutando intrigas. Chandler faz questão de colar em Marlowe, ele é nosso narrador, e acompanhamos suas investigações também nesses momentos prosaicos de vigília e solidão. Sim, Marlowe é um sujeito solitário. E precisa de um bocado de ação para se manter em movimento. Em Adeus, minha adorada, por exemplo, Búfalo Malloy acaba de cumprir temporada na cadeia e está de volta a Los Angeles. Parte atrás da antiga namorada, uma dançarina de stripper que mudou de clube sem deixar notícia de paradeiro. Claro que caberá a Marlowe descobrir que fim teve a mocinha - e no trajeto ele esbarra nos conflitos sociais e raciais de uma Los Angeles obscura. Enquanto Marlowe submerge, Chandler deixa à vista seus dotes de prosador, responsáveis pela vitalidade de sua obra ainda hoje, depois de décadas de imitadores mais e menos talentosos. Consegue conciliar a imaginação necessária ao autor de intrigas com uma dicção precisa, por maior que seja o rocambole de suspeitos (e o fermento funciona). Chandler prende mesmo o leitor mais desatento graças ao humor fino do narrador Marlowe, sempre com uma frase de efeito, sempre com diálogos perspicazes. É um mundo de crime, um mundo malvado, mas Marlowe não está para julgar ninguém, nem dar lições de moral. Hábil em descrever cenas, ambientes e situações através de imagens, Chandler entrega um texto que hoje se convencionaria chamar de cinematográfico. Não por acaso quase todos seus romances foram filmados com maior ou menor êxito. O apelo é evidente. Para saber mais O padrinho dos detetives durangos O problema básico para Raymond Chandler é que nunca conseguiu ser um autor veloz, no sentido de escrever ligeiro e produzir muito, ser prolífico e satisfazer a demanda da indústria pulp - e forrar o bolso. Chandler sempre andava meio duro e acabava fechando outros negócios por fora, participando de roteiros de filmes B, por exemplo. Pelo menos uma única vez, Chandler acertou em cheio num roteiro: ao escrever Pacto de sangue (1944) para Billy Wilder dirigir. Outros tantos projetos foram bem menos felizes e Chandler chegou a abandonar um projeto de cinema para reescrevê-lo como romance, Para sempre nunca mais, cumprindo assim seu último contrato. Chandler morreu em 1959 na pior. A morte de sua mulher, Cissy Chandler, anos antes, deixou-o deprimido a ponto de bloquear sua escrita, a ponto de mal sair de casa. Bebedor voraz, aumentou a dosagem diária e o declínio da saúde não tardou. Cissy morreu depois de anos doente, e a agonia de sua mulher na vida real é parte integrante do travo amargo e desesperançado que percorre O longo adeus, romance concebido por Chandler como a despedida de seu personagem, Philip Marlowe. O longo adeus abre com o reencontro de Marlowe com um sujeito que carrega uma cicatriz no rosto. Terry Lennox tem passado obscuro e presente incerto. Sua ligação com Marlowe é mal contada e o detetive parece pouco à vontade em sua companhia, mas aceitar prestar-lhe um favor, como se lhe devesse algo. Marlowe logo cai nas mãos de um punhado de meliantes que o torturam por dias a fio e, quando enfim é solto, nosso herói descobre que Lennox não teve tanta sorte. Como nas aventuras anteriores, abre-se um labirinto de farsas e farsantes. E Marlowe só querendo abandonar esse emprego miserável que lhe resta. Mas, como determina Chandler, "ainda não inventaram uma maneira de dizer adeus para os tiras". E seu detetive voltaria depois para mais um par de missões, desta vez apenas pelo dinheiro, para poder encontrar um fim digno. Mesmo tendo combatido na Primeira Guerra ao lado da Força Aérea Britânica, não ocorreria a nenhum bacana condecorar Raymond Chandler como Sir Raymond Chandler, Cavaleiro da Rainha & Padrinho dos Astutos Detetives Durangos.

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