postado em 04/01/2010 07:00
Avessa a rótulos e bajulações, a escritora Clarice Lispector provavelmente tomaria um susto ao se deparar hoje em dia com a horda de admiradores fascinados por sua obra e, por que não, por sua enigmática persona. Morta há exatos 32 anos, um dia antes do seu aniversário, em 9 de dezembro de 1977, a escritora de estilo intimista tem conquistado corações e mentes de diferentes gerações por meio de uma escrita que mergulha fundo do lado mais escuro da alma humana. Uma prova desse encanto imediato está nas mais de 3.200 pessoas que já passaram pela exposição Clarice Lispector - A hora da estrela, em cartaz na programação do Centro Cultural Banco do Brasil até 14 de março. "Eu sei que antes ninguém me entendia, agora me entende", chegou a dizer Clarice, meio que esboçando falsa modéstia. "Com o perdão da palavra, sou um mistério para mim", escreveu em A descoberta do mundo.
Vista por mais de 400 mil pessoas no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e no CCBB do Rio de Janeiro, a mostra, criada para lembrar os 30 anos da morte da autora, tem curadoria do poeta Ferreira Gullar - em parceria com Júlia Peregrino - e cenografia da cineasta Daniela Thomas (Linha de passe), assinada com Felipe Tassara. Desenvolvida a partir de símbolos e códigos extraídos de sua vasta obra, a exposição cenográfica despertou atenção de quem passou pelo lugar pela inventividade.
Gente como o economista Ericsom Costa, 58 anos, que fez questão de levar o filho, de 29 anos, para conhecer o espaço durante o feriadão de fim de ano. "Acompanhei a obra dela há muito tempo, é uma escritora atemporal e cosmopolita ao mesmo tempo e que deixou um legado importante para a língua portuguesa, mesmo não dominando bem nosso idioma", comenta Costa. "A Clarice foi uma grande descoberta na minha adolescência porque ela conseguia dizer as coisas que a gente queria dizer e não conseguia. Foi uma autora que descreveu bem a existência humana", observa o filho, Eduardo Costa, há 10 anos morando na Califórnia, Estados Unidos, onde estuda cinema na USC (University of Southern California). "Fiz anotações de várias frases expostas na exposição, quero usá-las futuramente de alguma forma em meus trabalhos", revela.
Acompanhada das amigas Ana Lígia, 14 anos, Caroline Valle, 14 anos, Bruna Barbosa, 14 anos e Ana Paula Barbosa, 16 anos - as duas últimas de Goiânia -, Alice Vieira Crepory, 13 anos, demonstrava encantamento com a mostra. "Achei a exposição bastante criativa e interativa, deu para acompanhar muito da vida pessoal dela por meio de detalhes como as cartas dela ao filho", relata. "Não sei quando comecei a ler Clarice, não foi na escola, com certeza, acho que uma amiga me indicou. O que ela escrevia foi uma grande novidade para mim", emenda.
Com vida recentemente retratada no teatro com emotiva e elogiada montagem desenvolvida em 2009 pela atriz Beth Goulart, grande sucesso no palco do CCBB/Brasília, a escritora de rosto forte e sotaque carregado (Clarice nasceu na Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920), é, atualmente, um nome em evidência nas principais livrarias com lista que agrega seus próprios títulos, ensaios acadêmicos, traduções, textos infantis, textos relacionados às artes cênicas e biografias. Só na Livraria Dom Quixote, do CCBB, 10 títulos estão à disposição dos visitantes da exposição A hora da estrela. Destaque para a recém-lançada biografia Clarice (Cosac Naify), do norte-americano Benjamin Moser. "Incrível, mas ela acabaria despertando interesses mundiais", admira-se o economista Ericsom Costa, referindo-se à recente biografia.
EXPOSIÇÃO CLARICE LISPECTOR %u2013 A HORA DA ESTRELA
Até 14 de março, de terça a domingo, das 9h às 21h no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Classificação livre. Informações: 3310-7087 ou www.bb.com.br. (SCES, trecho 02, lote, 22).
Labirinto de sensações
Dividida em seis partes, a exposição Clarice Lispector %u2014 A hora da estrela conduz o visitante por esse labirinto de sensações construído a partir de códigos e signos inerentes ao universo da autora. Acompanhe a seguir, passo a passo, cada momento da vida da artista, mas também do seu lado mãe, mulher independente, jornalista audaciosa, turista aventureira, mulher de diplomata e entrevistada pragmática.
Primeira parada Após passar por um grande olho que instiga o visitante a olhar para dentro de si mesmo a partir das mensagens da escritora que, como poucas, captou a essência da alma humana, o público se depara, logo na entrada, com quatro enormes telas impressas em filó preto trazendo o rosto da artista em quatro momentos diferentes de sua vida. Quase que brotando da cabeça da escritora, frases enigmáticas como: "Só posso alcançar a despersonalidade da mudez se eu antes tiver construído toda uma voz", extraída do livro A paixão segundo G H.
Janelas do cotidiano A próxima parada conduz o visitante ao ambiente das questões cotidianas, elementos tão presentes na obra da escritora e aqui materializadas em 10 minúsculas janelas contendo pequenas fotografias, cada uma fazendo referências aos pseudônimos criados por Clarice, sua condição de mãe, a vida de esposa de diplomata e a paixão pela natureza e os animais, em especial, os cães. "Meu cão me ensina a viver. Ele só fica 'sendo'. 'Ser' é minha mais profunda intimidade."
Um sopro de vida. O terceiro ambiente, tomado por grande quarto branco, ciceroneia o visitante pelos meandros do kafkiano A paixão segundo G H, livro cuja trama se passa toda no quarto da empregada dessa misteriosa mulher identificada apenas pelas iniciais. No espaço, frases batidas à máquina cravadas nas paredes observam silenciosamente uma solitária cama e seu colchão, que traz os dizeres: "Mas eu denuncio. Denuncio nossa fraqueza, denuncio o horror alucinante de morrer e respondo a toda essa infâmia com exatamente isto que vai agora ficar escrito - e respondo a toda esta infâmia com a alegria, puríssima e levíssima alegria. A única salvação de um ser humano é a alegria".
Uma mulher do mundo Nascida na Ucrânia, mas criada em Recife e no Rio de Janeiro, Clarice Lispector rodou o mundo na condição de esposa de diplomata. Essa passagem de sua vida é captada na exposição por meio de um grande elevador do tempo que traça a trajetória das viagens da artista que chegou a morar em Argel, Casablanca, Roma, Paris, Londres, entre outras cidades. As luzes que se acendem e apagam nesse espaço mantêm um inconsciente flerte com o espetáculo montado pela atriz Beth Goulart, este ano, em homenagem à escritora.
Gavetas kafkianas O universo angustiante do escritor tcheco Franz Kafka mais uma vez é referenciado na ambientação da quinta sala da exposição. Nela, quatro gigantescas paredes cheias de gavetas expõem aos visitantes a intimidade da escritora por meio de inúmeras cartas trocadas com outros escritores amigos - entre eles, o mineiro Paulo Mendes Campos -, documentos pessoais como passaportes e carteiras de identidade, além de manuscritos e cadernos de notas. Todo o material, aberto ao público, pertence ao Acervo Clarice Lispector, sob a guarda da Fundação Casa Rui Barbosa.
Discurso pragmático Conhecida pelas frases curtas e observações pragmáticas acerca da vida e das circunstâncias que a rodeavam, formuladas dentro de um carregado sotaque, a escritora Clarice Lispector também chamava atenção por apresentar persona enigmática, quase obscura, além, claro, de beleza exótica. Esses dois lados da mesma moeda podem ser identificados pelos visitantes nessa sexta e última parada que conta com aconchegante sala escura, onde é exibido um vídeo com uma entrevista feita em 1977, a Júlio Lerner, nove meses antes de sua morte. Aboletados em um sofá grafite, sutilmente decorado por uma máquina de escrever Underwood, similar à usada pela escritora, as pessoas costumam esquecer da hora. A entrevista, feita pelo jornalista Júlio Lerner para o programa Panorama, faz parte do acervo da TV Cultura, de São Paulo.