No filme Aconteceu em Woodstock, que estreou sexta-feira passada em Brasília, o cineasta chinês Ang Lee (de O segredo de Brokeback Mountain) comete uma "heresia" que pode incomodar os mais devotos fãs de rock: trata o megafestival sem a pompa mitológica que o acompanha desde o início dos anos 1970. Na comédia, o rock 'n' roll entra em cena como coadjuvante. O diretor fecha o foco nas descobertas de um jovem designer que, sem menosprezar o potencial de uma pousada decadente, acolheu tripulantes ilustres da caravana paz-e-amor. E, quase de raspão, acabou fazendo história naquele fim de semana de agosto, em 1969. Quando lançado nos Estados Unidos, o longa-metragem foi abatido por críticos que sentiram falta de um "contexto musical". A edição remasterizada dos discos Woodstock e Woodstock 2 (lançados no início dos anos 1970 como trilha sonora do documentário de Michael Wadleigh) pode, por isso, satisfazer os espectadores que saíram da sala de cinema com a sensação de que faltou rock 'n' roll na crônica de Ang Lee. Seria possível filmar Woodstock sem fazer referência aos solos de Jimi Hendrix, aos elegantes discursos políticos de Joan Baez e à performance acrobática do The Who? Talvez o cineasta concorde com Pete Fornatale, autor do livro Woodstock (lançado no Brasil pela editora Agir). O autor observa que, na celebração hippie, os convidados célebres sofreram com equipamentos de som precários e, sob trovoadas, se enrolaram até para acertar alguns dos acordes mais difíceis. Uma multidão de aproximadamente 500 mil pessoas experimentou o cardápio completo da contracultura - mas poucos conseguiram ouvir alguma coisa. Os discos registram esse descompasso: podem ser divididos entre os momentos incontornáveis da música pop e aqueles que sobrevivem apenas como material de pesquisa. A (ótima) novidade é que os CDs que chegam às lojas limam a cacofonia da versão original. O mito nunca soou tão cristalino. Lançado em 1970, o LP triplo Woodstock embarcou no sucesso de um filme que, de tão popular, ajudou a expandir o estilo de vida flower power para além dos Estados Unidos. Vendeu mais de 2 milhões de cópias, ficou quatro semanas no topo da parada de sucessos, mas não foi poupado de críticas: por desacertos contratuais (e técnicos), alguns dos shows mais elogiados do festival foram ignorados - a ausência de Janis Joplin e Creedence Clearwater Revival está entre as imperdoáveis. Já Crosby, Stills & Nash, não sem méritos, aparecem em três momentos - dois deles, acompanhados pela primeira vez de Neil Young. Apesar das incongruências, o primeiro álbum registra momentos simbólicos do fim dos anos 1960: o hino norte-americano reinventado pela guitarra de Jimi Hendrix, a saudação debochada de Country Joe McDonald (em The fish cheer), o transe de Richie Havens (que, por incrível que pareça, criou Freedom no improviso) e a versão definitiva de With a little help from my friends, dos Beatles, por um recém-descoberto Joe Cocker. No segundo disco, Melanie e Mountain são incluídos na seleção. Mas, nesse caso, sem rebuliço comercial: talvez porque os tempos mudaram aceleradamente - e, já em 1971, a ideia de revisitar Woodstock começava a soar como oportunismo.