Ricardo Daehn
postado em 19/01/2010 07:00
No indefinido jogo entre a vida e a arte, a vida pode pregar ironias, como no caso da trajetória da diretora californiana Kathryn Bigelow. Duas décadas depois do desfeito casamento com James Cameron ; o cineasta sempre interessado em projetar heroínas do porte de Sigourney Weaver ;, Kathryn, celebrada pelas produções detidas em temas com apelo para a plateia masculina, se encontra num campo privilegiado, com o longa Guerra ao terror, um título quase certeiro nas apostas por um Oscar. Explorando elementos bélicos, a fita, curiosamente, tem potencial para confrontar o fenômeno (em termos, pacifista) Avatar ; por acaso, capitaneado por James Cameron ; na arena pela prestigiada estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.Filmado em super 16 (com aproximação documental), na fronteira entre a Jordânia e o Iraque, Guerra ao terror demarca, na ambição da diretora, como dito à imprensa internacional,;um equilíbrio de tom ; a meio-termo entre o entretenimento e uma abordagem com mais substância. Desponta, daí, uma maravilhosa tensão entre ambos os elementos, e no acerto do equilíbrio é que reside a arte;. Com mais objetividade, um personagem do longa é quem define: ;No fim das contas, se você está no Iraque, está morto;.
A realização que cerca as experiências do jornalista nova-iorquino Mark Boal, um colaborador da revista Playboy, que criou (com Paul Haggis) o roteiro de No vale das sombras (outro desmistificador do conflito iraquiano), galgou posição de unanimidade, uma vez que renomadas 250 publicações e entidades americanas e estrangeiras têm Guerra ao terror(1) na lista dos ;10 mais;. ;Para um cineasta, a guerra, possivelmente, rende a última tela ; então, estava fascinada;, já afirmou Kathryn Bigelow, aos 58 anos.
O paralelo com elementos da pintura vem amplificado, quando lembramos que a diretora é artista plástica com curso no Museu Whitney (Nova York), obras outrora analisadas por Susan Sontag e a pretensão, recorrente em entrevistas, da ;criação de uma réplica; para a situação experimentada no Iraque. De caráter voluntário (na vida real), a adesão de militares no grupo que desmantelou explosivos no Iraque, em 2004, anima não apenas a trama do filme, mas a própria cineasta. ;Eles são como cirurgiões. Ser aceito pelo esquadrão confirma tanto a capacidade de sagaz planejamento quanto a incrível destreza motora;, sublinha.
A atuação de atiradores de longa distância foi das únicas barreiras, por sinal, ao desejo (engavetado) por autênticas locações iraquianas. Imprimindo sensos de isolamento e de confusão no filme, Bigelow chegou a definir o enfoque da câmera para ;um conflito abstrato;. ;Normalmente, estabelecemos a ideia de front e de retaguarda para o campo de batalha que, lá, está numa área urbana muito populosa. Não há a menor segurança: a transitoriedade está por toda a parte;, contou a um jornal americano.
Revestido de coragem
Premiado como melhor ator pela Sociedade Nacional de Críticos de Cinema e por círculos especializados de Chicago e Boston, além de seis entidades, Jeremy Renner interpreta o sargento William James. Ele substitui um ex-companheiro, morto em combate, trazendo desconforto, pelo grau de destemor, para o parceiro de posto, Sanborn (Anthony Mackie) e para o inexperiente Owen Eldridge (Brian Geraghty).
Tendo modelos extraídos da realidade, para a construção dos tipos vividos por Ralph Fiennes, David Morse e Guy Pearce, Kathryn Bigelow apostou no que chama de ;descrição sincera; da caótica experiência do roteirista Mark Boal, em 2004, numa realidade com a ;comunicação dificultada, diante da falta (à época) de intérpretes árabes;. Tida como virtuose e dotada de tecnicismo na sétima arte, a diretora, uma autoridade quando o assunto é sedução da ala masculina de espectadores, é quem indica os parâmetros que qualificam os combatentes retratados. ;Você tem à frente a bravata e a presunção, mas também a compaixão que eles sentem;, avalia.
A léguas da realidade do retrato de um outro deserto ; agitado pelo misto entre faroeste e filme de terror vampiresco, em Quando chega a escuridão (1987), cuja receptividade desembocou no reclame de retrospectiva instantânea da incipiente obra dela no Museu de Arte Moderna de Nova York ;, Bigelow, ex-atriz de Born in flames (1983) e até modelo esporádica para um anúncio da Gap, em Guerra ao terror, mostrou o poder de fogo.
Pelo apoio da companhia francesa Voltage Pictures, ela angariou dinheiro e controle absoluto sobre o longa, com imersão completa, desde 2005. Numa escalada ; que já rendeu o título de melhor filme em um forte circuito de nove entidades de críticos, que inclui a associação de Chicago (um bom termômetro para o Oscar) ;, a diretora colhe frutos inesperados para uma produção que faturou apenas US$ 16 milhões. Avatar, o vencedor do Globo de Ouro, vale lembrar, caminha para US$ 1,4 bilhão nas bilheterias. Há quem diga, porém, que a vida não só imita a arte, mas também dá muitas voltas.
1 - Nas salas de cinema
A fraca receptividade brasileira a filmes que abordavam os conflitos no Oriente Médio desencorajou a Imagem Filmes na distribuição de Guerra ao terror. Mas a atual visibilidade da produção de Kathryn Bigelow fez a empresa rever a posição e investir na exibição da fita, nos cinemas, a partir de 5 de fevereiro. Curioso é que o lançamento se dê depois de o filme chegar, em 6 mil unidades, às locadoras de DVD.
; Critíca
Guerra ao terror ***
Técnica e ironia
Num clima de contagem regressiva, Guerra ao terror se fixa nos últimos 38 dias das ações, no Iraque, de militares integrantes da companhia Bravo. Além da ação incessante, em coreografias estudadas (ao adentrarem prédios desconhecidos) e uma precisão milimétrica na desativação de bombas, os guerreiros, que fingem menosprezar os riscos, estão ;cercados; tanto pela sistemática tensão quanto pelo olhar inquisidor (quando não vilanesco) dos moradores de Bagdá. As imagens nebulosas parecem, de fato, autênticas.
Num campo em que afloram cinismo e ironia, como antídoto para a instabilidade emocional dos soldados, o domínio técnico exibido pela diretora Kathryn Bigelow impressiona. Novato, apegado à adrenalina (mas nunca amador), o sargento James (Jeremy Renner), numa cena realista, está ilhado por sete bombas: é desses momentos, abusando da câmera subjetiva, que a cineasta apresenta seu valor. A câmera lenta também deixa qualquer um boquiaberto, tamanho o grau de detalhes dos estilhaços.
No registro da maleabilidade de hierarquia, alguma insubordinação (natural, pela pressão), além da boa captura do senso de solidão dos combatentes, Bigelow tem mérito de entender o compromisso das personagens com a linguagem da violência, presente até nos momentos de lazer. O enfoque do filme, em última instância, reitera a noção de que os homens podem, literalmente, virar pó. Absorvida pelo clima de secura, a diretora surpreende (sem, contudo, comprometer), ao ceder para cenas em que os personagens filosofam ou para o fim, óbvio, que contrapõe a escassez da guerra à fartura do cotidiano norte-americano (na sequência do supermercado). (RD)
Principais filmes da diretora
K-19: The Widowmaker (2002)
Com Harrison Ford, Liam Neeson e Peter Sarsgaard. Criticado pela falta de ação, o filme aborda um fato real, ocorrido durante a Guerra Fria e ocultado por quase três décadas. Em pauta, a falha de um reator do submarino nuclear soviético K-19 que, em 1961, trouxe suspense ; pelo possível desencadeamento de um terceiro conflito mundial ; e ressaltou a perícia de soldados russos, na desastrosa missão.
Estranhos prazeres (1995)
Com Ralph Fiennes, Angela Bassett e Juliette Lewis. A partir de uma história desenvolvida pelo ex-marido James Cameron, Bigelow formata a trajetória de ex-policial (Fiennes) que, na Los Angeles de 1999, vende mídias ultrarrealistas, capazes de repassar experiências sensoriais alheias. Ficção científica, um assassino exibicionista e uma atenta guarda-costas (Bassett) movimentam este thriller.
Caçadores de emoção (1991)
Com Patrick Swayze, Keanu Reeves e Gary Busey.
Farta adrenalina, na captura de imagens de esportes radicais, e um verniz de filosofia, que emana do personagem de Swayze, demarcam o tom dessa aventura. Com trama na Califórnia, mostra o aprendizado de um novato agente do FBI (Reeves) infiltrado num grupo de surfistas, suspeitos de atuarem como bandidos, que se disfarçam com máscaras de ex-presidentes.
Jogo perverso (1990)
Com Jamie Lee Curtis, Ron Silver e Louise Fletcher. Megan (Curtis) é uma policial que, logo na primeira ronda em Nova York, tem a capacidade questionada, por abater um criminoso supostamente desarmado. Suspensa, ela tem a situação agravada ao se relacionar com um homem com panca de serial killer (Silver). A exemplo dos filmes de James Cameron, a diretora comanda uma fita na qual a força feminina se projeta.