São misteriosos os ingredientes da alquimia sonora de Jorge Ben Jor. Por cinco décadas, o carioca exerceu poder discreto, mas quase soberano, sobre o reino da música brasileira. Desde a estreia, em 1963 (em Samba esquema novo), não parou de influenciar artistas de MPB e pop nem de renovar uma torcida que hoje o trata como ídolo cult. Ainda mais espantosa é a forma como essa arte intensamente original sobrevive ; e se fortalece ; em meio à crise do mercado fonográfico. Até agora, descobrir os discos essenciais da carreira de Jorge (e, por consequência, dos anos 1960 e 1970) exigia um longo trabalho de investigação. Em sebos ou sites, os incansáveis pupilos reuniam os elementos químicos de uma discografia injustamente incompleta.
Nas lojas, os fãs encontravam reedições em CD para as obras-primas Samba esquema novo, A tábua de esmeralda (1974) e África Brasil (1976). Juntos, os álbuns sintetizam a história do cantor encabulado de samba-jazz que, nos anos 1970, inventaria uma mistura inimitável (e delirante) de samba, soul music, funk, misticismo e futebol. Faltavam, no entanto, peças essenciais que ajudam a entender como Jorge Duilio Lima Meneses consolidou um estilo inimitável enquanto transitava pelos principais movimentos musicais dos anos 1960, disputado pelos times de tropicalistas e bossanovistas. A caixa de CDs Salve, Jorge, finalmente lançada pela Universal Music, restaura uma obra monumental.
Com 14 álbuns remasterizados ; entre eles, um CD duplo de raridades ;, a coleção traz quase todos os tesouros do compositor (que, até o fim dos anos 1970, ainda atendia por Jorge Ben, e depois trocou de nome para evitar mal-entendidos com o cantor americano George Benson), editados originalmente pela gravadora Philips entre 1963 e 1976. A única lacuna é O Bidu. Gravado pelo extinto selo pernambucano Rozenblit, o disco mostra uma curiosa tentativa de aproximação com a Jovem Guarda. ;O artista revelado nesta caixa é um mago do suingue, que colocou um pouco mais de veneno na fusão do samba com a bossa nova e foi um dos precursores do rap, já que as letras de Jorge eram geralmente um tanto recitadas em cima das melodias;, observa o pesquisador Rodrigo Faour, que coordenou o projeto dos relançamentos, idealizado por Carlos Savalla.
Ainda que tenha se deixado influenciar pelo transe cultural dos anos 1960 (Jorge Ben, de 1969, tem participação do maestro Rogério Duprat, associado à Tropicália), Jorge Ben encampou uma revolução solitária. No disco de estreia, gravado aos 21 anos, a mistura de bossa nova, samba e jazz como uma anomalia. Não foi imediata a acolhida a hits como Mas que nada e Chove chuva, que demoraram a agradar à crítica e aos súditos de João Gilberto (um dos maiores ídolos de Jorge, aliás). Essa primeira fase da carreira, que vai até Big Ben (1965), definiu a arquitetura de um estilo que, a partir de 1969, ganharia um colorido ainda mais inusitado. Finalmente, Ben era uma unanimidade.
O turbilhão de ideias encontrou nos anos 1970 um período especialmente frutífero. Com o aval de um público comprometido com a MPB, Ben ousou como em nenhuma outra década. Na companhia do Trio Mocotó, experimentou em estúdio e, em meio a improvisos inspiradíssimos, espelhou sutilmente as tensões políticas da época no dolorido Força bruta (1970). Mais tarde, afinaria os violões em álbuns melodiosos e siderados como Negro é lindo (1971) A tábua de esmeralda e Solta o pavão (1975). Em tempo de reinado do funk, interpretaria o gênero com guitarras no poderoso África Brasil. ;Jorge sempre transitou com naturalidade por samba, bossa nova, Jovem Guarda, tropicália, soul e tudo mais que você imaginar, sem se filiar a nenhuma corrente. Sua corrente é o suingue, a alegria, a liberdade e a simpatia;, resume Rodrigo.
O CD de raridades se destaca por ressaltar o uso do violão como base percussiva. ;Sugeri a inclusão de Mano Caetano, num dueto de Bethânia com Jorge, que é uma faixa que quase nunca mais ninguém gravou. É uma canção feita para Caetano Veloso, que estava no exílio;, explica. Depois do auge, Jorge Ben Jor não encontraria nos anos 1980 o ambiente mais propício para desenvolver novos experimentos dessa usina de ritmos. Mas, mesmo quando reciclou sucessos em clima de baile carnavalesco, Jorge continuou Jorge: sempre a assombrar aqueles que tentam desvendar os segredos de uma arte tão sofisticada e, ao mesmo tempo, instintiva.
Todos os discos
; Samba esquema novo (1963)
; Sacundin Ben samba (1964)
; Ben é samba bom (1964)
; Big Ben (1965)
; Jorge Ben (1969)
; Força bruta (1970)
; Negro é lindo (1971)
; Ben (1972)
; Jorge Ben 10 anos depois (1973)
; A tábua de esmeralda (1974)
; Solta o pavão (1975)
; Gil e Jorge ; Ogum xangô (1975)
; África Brasil (1976)
; Inéditas e raridades (2009)